sábado, 11 de março de 2017

Myriam Coeli - Cantigas de Amigo




Terceiro livro solo da Myriam Coeli, "Cantigas de Amigo" (1980, Ed. Clima) traz como mote as antigas canções trovadorescas, em especial as cantigas de amigo, que têm como características predominantes: a musicalidade dos versos rimados, o eu-lírico feminino, o sentimento de saudade, amor e paixão pelo amigo (namorado).

Além de sua temática, que a princípio pode soar arcaica ou com modos ultrapassados, há uma transgressão ressignificativa, já que as antigas cantigas de amigo, na idade média, eram escritas por homens que se utilizavam de um "eu-lírico" feminino, mesmo que em terceira pessoa.

Esse livro traz algumas coisas curiosas, como os belíssimos desenhos que ilustram o livro, feitos pela Flor Opazo Baltra, e a apresentação sobre a autora, que tem dois momentos marcantes, um deles é quando se diz "Num tempo que à mulher era vedada a promiscuidade da redação do jornal - época do jornalismo boêmio - ela foi a primeira a dar batente na redação, no mesmo nível de igualdade com seus colegas literatos e boêmios". E o outro, muito simbólico, e que finaliza a apresentação, diz: "[Myriam] Está aposentada. Mas, viva.".

Abaixo, alguns poemas do livro:

***


II

Senhor de meu desvelo,
O canto que inventei
É ternura que eu velo,
Lágrima que enxuguei.

Se miragem componho
Na medida que aflora,
Inconcluso é o meu sonho
Silêncio sempre e agora.

Tempo que se refaz,
Gera palavra e invento,
Se a vós devolve a paz,
A mim, ânsia e tormento.

Enganos me sustentam
E tecem argumentos;
Se intentos acalentam
Desvivem meus momentos.

Reinvento vosso vulto
Presente em meus espelhos?
Corre venda-sepulto
Para olhos tão vermelhos.

Pois me sustento em pranto
E em tramas de vos ver.
Por vós luzo o meu canto
Triste candeia a arder.

***

 III

Andava ao léu
Por toldo, o céu.
Me descuidava
E apascentava
Na terra, ovelhas,
No céu, estrelas.
Na brisa amena,
Uma serena
Que ele tocava
E me tocava.

Andava ao léu
Por toldo, o céu.

Se ele tocava
Eu escutava.
Andando ao léu
Levava um céu
No peito meu.
E o canto seu
Me enfeitiçava.

O laço içava
Na voz de amor
Quem por louvor
A mim cantava
E encantava.

***

  IV

Cantar forte, cantarei
O que no peito é alta chama
O que se despoja e ama
Neste fel que me alimenta.
Agonia que sustenta
Do que amar servidão hei.

Cantar sim, eu cantarei
Dor do amor noturno irmão
Barro dor a extravasar.
Em negro timbre cantigo
Cristais cantigas de amigo
Que no tempo alentarei.

Cantar doce, cantarei
Com suspiros cris e a lenda
— Venda que me venda a senda
Que me levará a vós —
Ventura que busco a pós
Graça de amor que magoei.

***

 VII

Pastoreava meus rebanhos
Quando ele por mim passou
Em cavalo ajaezado.
Em tão linda cortesia
Meu amo, com louçania,
Coração seu me entregou.

Já de ventura apartada
Sem ter outro pensamento,
Pastoreando meus rebanhos
Cuido, sim, sem vilania,
O meu amo, com alegria.
Também o amor lhe prazo.

Nunca mais vi meu amado
Em cavalo ajaezado
Correr alegre no prado.
Ele me fazer sabia
Um rouxinol de alegria,
Partiu sem consolamento.

Pastoreio meus rebanhos
Sem mais ousar louçania,
Que do amo a cortesia
Ventura não deve mais.
Sem palavra, noite e dia,
Guardo esse amor retraído.

Quem pela Virgem Maria
Sem ter outro pensamento,
Vir correr breve ao vento
Seu cavalo ajaezado,
Fale em amor desesperado.
Faça meu nome aprazado.

***

  XI

— Por que a ponte baixam
   E os estandartes alçam?

— Oh! alegrai, senhora,
   Tendes vosso senhor.

— E o pajem por quem vivo
   E ânsia minha divido?

— Na masmorra, senhora,
   Infiel vassalo agora.

— Ah! amor que move mágoa,
   Dá ao olhar fonte d'água!

— Oh! alegrai, senhora,
   O senhor já vos procura.

— E o pajem quem me move
   Mal de amor que consome?

— Na masmorra, senhora,
   Infiel vassalo agora.

— Dizei-lhe que sonho eu
   Com sonhos que me deu.

— Passai, senhor, passai,
   Baixa ponte pisai.

— Tão tremosa estou eu
   Pois alma ensandeceu.

— Passai, senhor, passai,
   Falsa ponte pisai.

— Que os estandartes alcem
   Tristares em mim baixem.

***

XIII

— Ó da guarda
   Por que tarda
   Grande amigo?

— Inda é alba.

— Ó da guarda
   Por que tarda
   Dor comigo?

— É serena.

— Ó da guarda
   Por que tarda
   Morte amiga?

— Só negror.

***

 XVI

Ciência gaia o amor com seus floretes
De segrel donaire. O pranto segue
O de rouxinóis que o peito aninha
Alçando o canto — aves em minaretes.

O amor com seus floretes, suas sedas
Acalenta e baila este meu vagar
E o coração alerta — flanco e flama
Flamantes — adestrado por mãos ledas.

Com seus floretes de segrel donaire
Saudade luta com amarguras duras
(Há quanto tempo o lenço branco espera
Sinal de amigo, rendição donaire!).

E este meu ser ferido por vós, veja
Ungido, justo reino submetido
Ao vosso repouso, oh! Amigo em liça
De amor astuto e arguto. E eu vos seja.


Incalmo no peito mortal tropel
Voando sus paixão desavisada
Esses corcéis me esfolam, recusada
Se tardais, amigo, alçarei ao Céu.

***

 XVIII

Em ciência gaia
Afino esta viola.
Minha língua é incauta
Rouxinol é o canto.
Canto este descanto,
Canto o que me mata
Quem por mim não morre
(O que desconsola).
E dou maior valia
A inseguras mágoas
E vãs fantasias.
Teço versos de ais.
De salsas saudades.
Minha dor escorre
Cantigas de amigo
Que no vento morrem.

Triste ciência gaia
Esta arremedilha.
Afino esta viola
Amor é armadilha.

Por que ciência gaia
Se tão triste é amar?
Tantas cordas tange
Neste violar,
Que viola, viola sou
Violada de amar.

Nesta ciência gaia
Em viola triste
Cantigas de amigo
Dedos correm. Morro.
Chora o canto forte.
Voz e olhos fontes.

Cantigas de amigo
De mim alongado
Chora viola em ais
Suspiros finais
Que finado sinto
Amor malfadado
Imigo do fado
Que canto a chorar
(Amigo ouvirá?)

Triste ciência gaia
Esta arremedilha
Afinei a viola
Caí na armadilha.

***

 XXII

Senhora de mui castelos
Não de pedras ou de ameias.
Castelos flutuando no ar
Ou inconstantes nas areias.
Uns bizarros, outros belos.
Ventos uns a velejar.

Com as traves destravadas
Destravo traves que envergam
Duras portas envergadas
— Palavras ensangüentadas
Celas que da língua selam
Pelo espanto fustigadas.

Edifício que me rasga
Do almo a alma o almar
E me dá triste degredo
Vigésimo segundo andar
Masmorra que amortalha
Com capuz de asfalto e medo.
Que me preservem os átomos
Na construção dos castelos
E inventos não os desfaçam,
Nem drama urdido em um átimo
Ou o progresso que é o elo
Monstro de nossa desgraça.

Artefatos coloridos
De plásticos, aço e isopor.
Tudo aquém de minha janela
Só traz solidão e dor.
Pesam fardos sem sentido.
Senhor, dividir pudera!

Que outros castelos sonhados
(Que castelos, meu senhor!).
Só pássaros, nuvens, plumas,
Mais belos que o de Almançor,
Já no tempo arrebentados
Com anjos, flores, escumas.

Vigésimo segundo andar
É castelo muito alto
Jaz entre Oriente e Ocidente
E se me seduz um salto
Convosco não vou ficar
Mas manchete, certamente.

***

  XXIII

Neste engano que é o tempo
Eu caminho. Eu me colho.
Meu trovar, travo, recolho.
Ferida viva eu me agüento.

Neste desdouro eu me encontro
E teço minha parábola
Em tear de silêncio e sôbola
Que, tecendo em nu, confronto.

Com que sem ser, poderia.
Assim caminho, assim canto.
Amor, pena que descanto
Que amante só ousaria.



sábado, 4 de março de 2017

Avelino de Araujo - Abrapalavra





Abrapalavra (2001 | Editora Pixcada ) é o sétimo livro de poemas de Avelino de Araujo. Aqui, Avelino continua com suas experimentações imagéticas, agora mais centrado em temáticas tais como a natureza, o ego do homem, além de revisitar os seus famosos sonetos visuais.

Abaixo alguns poemas do livro: