sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Myriam Coeli - Inventário



Inventário foi o último livro publicado em vida pela Myriam Coeli. Foi o livro ganhador do prêmio Fundação José Augusto em 1981, sendo publicado no mesmo ano.

Ivan Maciel de Andrade escreve na apresentação do livro que a poesia de Myriam é tátil, "tem maciez, aspereza, contextura e contratura de pele, de nervo, de tecido humano." Tem também o aconchego, visto que os poemas deste livro são todos dedicados a amigos, familiares e pessoas que a Myriam admirava, montando assim uma espécie de inventário afetivo.

***

MEDIDA
                                                           Para João Lins Caldas


Na geometria de um caixão
não cabe espanto ou alarido
nem o tempo com seus vestidos,
vazio, fábula, condição.
Tolhida é a fala e a permanência.
Vida, hieróglifo decifrado.
Peito enredado em tédio ou em grito
não cabe em barco de um caixão.

Não cabe sede, fonte e fome
concretas arestas de espadas
lacerando da vida o signo
em verdades acrescentadas.
Garras da fúria de um minuto
não cravam ríctus nem desgosto
nem dialogam faces prismáticas
com configurações propostas.
Só cabe em crepes de um caixão
pontas de adjetivas sombras.

Não há ginetes cavalgando
no avesso das pupilas. E aves
súbitas em cantos no abismo
de sonhos. Ou olhos vigilantes.
Não há mãos, gestos delirantes,
coração tirso ou pés em préstito,
nem periscópio ou concisão,
cilício e muros submersos.
Prata, ouro, coisas corrosivas
tempo artesão e alma em volutas
sobram em móvel de um caixão.

Não há sega de sangue ou cuspe,
não há canto, mapa ou disfarce.
Dados e dardos não se arriscam,
nem se acendem em febres, brasas,
os desejos desconformados.
Nem pelo medo é devorado
que se tem em limite exato
nas alegorias do tato.
Não há labirintos seguros
onde a angústia é subterrânea
hiena que as vísceras come.
(Já nos suportes do caixão
começam clarins de silêncio).

Em horizontes de um caixão
linha exata repousa a treva
e o corpo — desusada pedra
de antracite, de pó e nada
levitando em logro. Insuflada
Caixão entre círios e réquiens,
de grifas negros, feras mortas
é em tralhas de rendas tortas
velado em catafalco amém.

Mundo que se desmistifica
no surdo baque de um caído.

***

MEDIDA DA CONSTRUÇÃO

                                               Para Djalma Maranhão

Com quantas fomes
famas e nomes
faz o operário
o seu andaime?

E quanto medo
paga em segredo
o seu salário?

O seu ofício:
riscar o chão
subir depressa,
como uma prece,
a construção.
(E quem lhe reza
uma oração? )

Com que doenças
aplaina o chão
da construção
se não repousa
em lar ou chão?

Quantas tijolos
desempilhados
toda semana
preparam a cesta
de um operário?
— Pilham seu pão.

Com quantos gritos
O mandatário conscientiza
pobre operário
estrangulado
na vocação?

Quanta revolta
a Iíngua trava
e dá ao peito
um ranço amargo;
— ele a quem cobra
a sua sobra?

Qual o salário
— sal e sudário —
que compra o pão?
A cal e o barro
que preço pagam
para luzir
toda a família
de um operário?

Com quanta dor,
ferocidade,
levita a mão
fazendo pluma
a construção?

Quantos amores
e quantos medos
sobem paredes?
— Ganho sumário
ganha o operário.

E quantos nãos
e solidões
negam seu pão?

Com quantos riscos
no ar suspende
estranho pássaro
quase esqueleto;
— pobre operário...
(Nenhum proveito,
só mau salário).

Quanto cansaço,
desilusão,
faz o operário
a construção?

Com quantas tintas,
com quantas portas,
e tantos caibros,
vidro e janela,
mais artefatos
sofisticados;
com quantas peças
postas em obra
o operário
com seu salário
prepara a cova?

Quanto lhe custa
em régua e esquadro,
serrote e pua
a construção
de largas ruas?

Com quantos sonhos
tão só sonhados
ele constrói
uma cidade?

Qual a medida
de sua pobreza
que dá grandeza
ao seu trabalho?

Quantos salários
estão guardados?
Quantos suores
lhe regam o chão?
Quanto dinheiro
lhe compra o pão?

Com quanto não
ergue paredes
e com que mão
arma sua rede
e na sua alma
planta rochedos?

Com quantas garras
ele se agarra
à construção;
se dilacera
e faz dois mundos
em disfunção:
um de carência,
um de opulência?

Com quantos lobos
no peito uivando
vai levantando
a construção?
— Quantos salários
pagam seu pão?

Lá dentro dele
há dissenção:
o mundo gira
na contramão.
A fúria fura
seu coração.

Revolta e medo,
fome e cansaço
são armações,
formas de aço;

o que constrói
de pedra e cal
e o que destrói
de nuvens e mel
são alimentos
do seu farnel
— ração do mal
com ira e fel.

Porque com prumo,
fio e compasso
sobe os andares
acerta a mão
e fina música
dá conjunção
aos instrumentos
do seu talento?
Se contracena
gestos e obras
com disfunção:
equilibrista,
mortal palhaço
visto no circo
ou no cinema
na mesma cena
que ele encena!

Com quantas presas
em seu silêncio
faz muro espesso
na construção
— própria prisão?

O seu ofício
de sacrifício:
— a construção.
O seu salário:
— minguado pão.
Da fome asceta,
da dor, profeta,
Cristo em Paixão,
é o operário
com seu salário
na construção
consciente esteta.

Porque tão negra
é a construção
não construída
no mundo avesso
de um operário
com vil salário?

Que construção
resgata o pão?
Que condição
faz comunhão
com seu salário
— pobre operário?

E quantos adros,
casas, sobrados,
campos, cinemas,
e demais temas
faz o operário
o seu anátema?

***


CONFRONTOS
                                                           Para Franklin Jorge

I

Honra e glória
não me formam
a memória
(fogos fátuos
que elas são).
Gritam medos,
há degredos
nos abismos
que me sorvem
para as mortes
que me talham,
que me matam.
Sinto o escárnio
de meu fado
deflagrado
fúria e cuspe
em meu corpo
— deus chagado,
desafiado
aos disfarces
e aos martírios.

São os dias
preço inflado
ao embuste
que me nutre
tão audaz,
me tecendo
compostura
de velórios
imprudentes
que me velam
desvelados.

II

Tralha humana
eu me faço
ontológica,
tão urdida
em meus crepes;
infundida
em mistério
intranquilo
que disfarça
a argamassa
e os estigmas.

Móvel traço
me articulo
em projetos
geométricos;
me circulo
convergente
para o ponto
de onde parto
com metáforas
divergentes.

Ser empírico
sobrevivo
ânsia em esgares
— meus sentires
sem cantares.

III

Mas que espantos
propanando
meu processo                                                                
de homem e pássaro!
Morta a fênix
só a besta
me devora
e devasta
com as patas
e os dentes
as sementes
da palavra
— esta prenda
com que prendo
o meu tempo
sem eventos.
Dura espada
me traspassa
e me mata
bobo e lobo,
pois da vida
o delírio
já me basta.

IV

Se a revolta
já se acende
em meus dedos?
Dor adestra
este trânsfugo
transe em saga.

Se agonia
já me venda
minha senda
e me exaure
à torção
— possessão
que sustém
os meus gritos
e esgares —
fina lança
peito crava
e os dias
me esmagam
com batalhas
incruentas.
Se componho
causa álacre
e degusto
meu silêncio
à invenção,
pressinto asas,
calmarias,
céu cobalto,
alegorias,
sol bem alto,
mais o sonho
— sem alcance.

V

No enigma
das vigências
que de humano
me define
só desvendo
o atrito,
o oposto,
o abusivo,
o avesso.
(Onde a flor,
paz e pomba
e a esperança
salve, salve? )

E as algemas
em sonidos
se coroam
com postemas?
Minhas técnicas
já me tolhem
e recolhem
liberdade
-- a porfia
tão tardia
em meus velos
confundida.

Se me apiedo
destas mágoas
(as amálgamas
de meu barro deformado),
mãos em riste
me deflagram
seus floretes;
rosto triste
me componho
me deponho
com um ríctus
de sorriso.
Sou o antes,
o esboço,
ante-esboço,
a hipótese,
a medula,
o que dorme
esquecido
em seu limbo.

Não me esplendem
honra e glória;
me amarroto
— sonho roto —
em enxurros.
Que proclamo
é efêmero.
Só o grito
é possesso
infinito.
Dilaceram
cotidianas
estas mortes
que obliteram
e das quais
ressuscito
anti-cristo
implosivo.

Da medida
pretendida
do universo,
controversa
disfunção,
entre urras,
murros, urros
e epitáfios,
eu tão triste,
— solidão.
O que sou:
o poema
ou o anátema?


***

DESNUDAMENTO

                                                   Para Iris Silveira Gomes de Costa

I

Imantar
condição;
levantar
avantesmas
enterrados
sob a pele;
construir
meus espantos;
me ajustar
em dilemas
e em fogueiras
me crestar;
me fazer
transitória
semelhante
(tão amarga)
desnudada.
— Parvo ofício.

II

Se persigo
o concreto,
há jazigos
nos espaços
dos meus gritos
e os corpos
decompostos
com entranhas
empalhadas.
Se convivo
louco intento
do abstrato,
já me tento
ao concreto
de ser sendo
salitrada.
Com a veste
decomposta
do viver
estriada
sob a pele
que o lobo
não esconde,
eu me escondo.
Eu sou garra,
me lacero
com a fúria
de meus erros,
de meus uivos.
Dos cilícios
já do peito
a ferida
tão exposta
na argamassa
não se fecha.
Sou escara.
Sou voragem.
Da figura
sou o avesso
e o estigma.

III

Sob a língua
os enganos
me adulteram,
desfiguram
com limalhas
as sintaxes
e os suspiros
— minhas fomes
minhas fontes —

Se me movo
distendida
nestas ânsias,
me transformo
em cansaços,
em fracassos.
E os sonhos
que deslindam
fogos fátuos
me incendeiam,
me incineram
nos disfarces
de seus signos.

Eu me engano
— ser falaz —
pois que sou
carne podre
fel e céu,
chaga e trapo,
demo e deus.

***

BUSCA
                                                                   Para Celso da Silveira


Deus é a meta.
Eu O procuro
em vias tortas
e em metáforas.
Sou caliça,
fel, mordaça,
circo e faca.

Deus é a face.
Eu, o disfarce.

Deus é o indício.
Eu, caos, círculo.

Deus cativo
— minha fábula.

Deus é a seta.
Eu, a meta.

Deus é a trilha
das temências
desta fera
teosófica.

Deus, linguagem,
já me acorda
e, com ela,
me interrogo
gutural.

Deus, dual,
que me entrega
pródiga árvore
com seus frutos
que ressumam
Bem e Mal.

Sou engodo,
prumo e rumo,
sonda e ronda,
arco e alvo,
céu e chão.
Meu ofício:
— dispersão.

Deus é o verbo.
Eu, o Erro.

Deus é o espelho.
Eu, a imagem.

Deus é infindo.
Eu, finito.

Deus é a luta.
Eu, a espada.

Deus é eterno.
Eu, o minuto.

Deus, amor.
Eu, o ardil.

Deus, temor.
Eu, o terror.

Eu sou morte,
tédio, pó,
ser fremente,
o debuxo
do momento,
almenara
do contexto
carne e sangue
que incendeia
o improvável;
fugitivo
de meus medos
eu me escondo
no esconso
mau
âmago
que amarga
triste exílio.
Ser convulso
me afirmo
no vão fulcro
do artificio.
Torto e podre
meu silencio.

Se contorno
estas sombras
que alongam
os meus sopros,
já me penso
semelhante
só e farsante.

Crucifica-se
minha essência
na inconstância
de calvários
onde morrem
maravilhas
de esperanças.

Deus é a meta.
Eu O procuro
em vias tortas
e em metáforas.

Deus é a Face
— meu disfarce.

***

POEMA DA CONTESTAÇÃO

                                                       Para Cristiana Coeli

O que destrói
é o que disfarça
nuvem ou argamassa.

Não o imprevisto
e seu gilvaz.

Mas é a máscara
e seu invento
no rosto incauto
de pluma e farpa.

O que destrói
não é máquina
e suas tenazes.

Não são os pássaros
só pressentidos

Mas a medida
da permanência,
dura, precisa,
fiel do tempo.

O que desfaz
são os tentáculos
da vil palavra.

Não o absurdo
de flor e algema.

Mas a doação
de canto e gesto
e nas metáforas
o fel das gestas.

O que desfaz
não é o repto
da condição.

Não é o sonho
e seus cristais.

Mas é o ofício
de decifrar
alegorias
e os segredos.

O que desfaz
é o falso mito
da semelhança.

Não o engodo
libertação

Mas é o grito
punho ira escárnio
transe medo ópio
e o canto audaz

O que destrói
é o que floresce
em sonho e lodo.

Não o improvável
de entranha e espanto

Mas o limite de ser/não ser
que a morte exaure
em pó e olvido.

O que destrói
está no homem
com suas fomes.
***

INCIDÊNCIA

                                                             Para Eli Celso

Um sol de sal
tão vertical
sobre meus dias.

Um sol de cal
incide oblíquo
no que respiro.

Um sol de vento
em meu tormento
lento, tão lento.

Um sol de ascuna
aflito alumbra
o seu metal.

Um sol de espera
já desespera
tantas esperas.

Um sol de não
é invenção
sobre este chão.
Um sol gilvaz
se dilacera
na triste face.

Um sol mendaz
se faz escâncara
em feras fauces.
Um sol de escara
amarelece
a rubra carne.

Um sol amargo
em brasa exaure
as frágeis veias.

Um sol de sangue
é o coágulo
no corpo exangue.

Um sol de sombra
solombra assombra
parcos eventos.

Um sol de pedra
se reticula
em urdidas cavas

Um sol soturno
quer esplender
tão negra luz.

Que sol do negro
degredo ofusca
entre meus dedos?


***

DOS RETRATOS

                              Para meu avô Silvino de Araújo Costa

As longas barbas e as suíças bem cuidadas
alongaram-lhes no tempo a heráldica compostura.
Se os retratos nos trazem suas severas presenças,
há estática poesia em suas figuras.
Assim tão fortes,
mãos sustendo românticos chapéus,
luvas e bengalas,
eles ficaram decorando as salas.
Mas no gesto que o momento surpreendeu
não há os movimentos
que os inclinavam aos frutos que plantava,
nem às fazendas e engenhos que cuidavam:
nem nos olhos se pressente a acesa luta,
sem divisar e sem armas,
contra o inacabado cotidiano
entre a casa e a terra brava,
entre os laços e os âmagos que amargavam.
Distantes e sérios como posaram
o enigma de seus íntimos perfis!
Lembram românticos poetas, de flor ao peito
e rostos varonis
de serenidade feitos;
ou cavaleiros medievais
sem disfarce das armaduras,
que, rijos e fortes,
fizeram bela figura
lutando contra sol e solidão
em terra ubérrima e em tórrido sertão.
Como defenderam seus brasões!
— das paredes, a nobreza das selas, dos arreios,
das esporas de ouro e prata, montarias vindas do Reino,
o chapéu de couro, o jibão, os estribos
com as armas da casa assinaladas,
tão defensivas
como os incrustados punhais de punhos bordados.
E mais as coisas finas habituais:
porcelanas de Sèvres, cristais da Boêmia, santos portugueses,
urinóis de louça numerada
e o reluzente relógio de algibeira de colete e correntão,
e filhos e filhos tecendo os dias
de coisas ternas acontecidas no repouso domiciliar
convivido com mulheres de ternuras maternais
e alvos regaços apontando em decotes rendados.
A rudeza lhes faz rotina nesses retratos
de antigas pinturas esmaecentes.
Mas se lhes acontecia repousar esquecidos dos postais,
das casas grandes as janelas se abriam e lhes chegava
o cheiro do campo e do húmus,
da agreste flor, o trilar do pássaro
e o grito infante dos espantalhos
pastoradores de arrozais e trigos.
Também lhes chegava o mar com o seu monótono canto,
não o mar com acre cheiro de sargaços,
mas, ondulante e verde, de palma agitado,
que sabia a mel e acendia a manhã
para o desdobrado afã das moendas
dos inflamados tachos em fogo consumindo
o caldo sumarento da cana que a prensa machucava.

Assim em papel estabelecidos
tão sós ficaram em sua humana farsa
que o carinho a eles me comove.
Ah! como por trás dessas imagens se agitavam
homens que sonhavam e que sabiam!
E só à noite, os avós despertos, sorriam,
e das coisas de seu mundo esquecidos
ficavam, confessos romeus, de mãos dadas,
à luz de lampiões
com suas fiéis amadas.
Gestos tão cordiais não confirmam os retratos
nem aquela ternura estremecida com músicas de saraus,
com pontas de lenço suas mãos juntando,
em disfarçados suspiros de amor de tanta loucura
feita em alcovas e senzalas.

A dureza de seus silêncios, nesses grossos retratos,
da moldura ora despertos,
reteza heroica nesses meus versos.

***

CÓDICE
                                                Para Zila Mamede

Se é que enfrento
do viver, códice
é que não basta
ao meu intento
o mito ou a fábula
que me ultrapassam
em meus anátemas.
Se me devasto
em duro exílio
ou me apiado
de meus delírios,
já me desnutre
do sonho, o fruto.
Se ousando enfrento
o meu evento
tão instruído
dos meus tributos;
o meu recado
reticulado
o medo prende
em tessituras
de algema e ascuna,
pois azougadas
são minhas feras —
fácies escâncaras
no codicílio
do mendaz tempo —
anagramadas
às minhas falas
embaralhadas.
Se o braço arma
nas mãos punhais
e se defendo
às minhas leis
um item a mais
flamando o peito,
falece o gesto
e já me perco
massificada
entre os demais.
Se é que enfrento
as minhas osgas
de úmidas cavas
ou loucas nuvens
em céus recurvos
já é tormento
a meu causa
de infaustas lutas
que pelo avesso
bravura esmaga.

***

DISFARCE
                                               Para Moema Tinoco Cunha Lima

De salgema
o poema
já disfarça
meus dilemas.
Nele arrisco
meus cristais
e empenho
esperanças
que decifro
circunscritas
em lembranças.

Meu poema
é agonia
em enigmas;
é espelho
que deforma,
mistifica,
ao inverso
meus mistérios.

É esgar
de conflitos
que sustém
os meus gritos.
É espada
que alanceia
meus espantos.
E meus medos.
É navalha
que me fere
pele e cerne.

É a sede
que acicata
meus limites
e me seca
riso e lágrima.
É vertigem
de tumultos
em meu peito.
É florete
de palavras
com argumentos
que estoca
meus momentos.
É silêncio
que devora
em seu travo
de meu ventre
os segredos
e os degredos
tão amargos.

É verdade,
servitude,
o disfarce
que me inventa
divergente.
(Nele escondo
meus fantasmas
consciente).
Armadilha
que me prende
à medida
de meus medos
e anseios.

É o ritmo
que decifro
do imprevisto.
É o arauto
que inaugura
com avantesmas
a mensagem
de amargura.

Face múltipla
que recria
minhas flautas
de alegria.
É alaúde
de estilhaços
que me ferem
abstratos.

Meu poema
é suplício
no disfarce
de narcisos.

***
PROCLAMAÇÃO DO OFÍCIO

                                                      Para Irene Chaves Monteiro
I

Que proclamar além da herança
da inventariante linguagem
— desígnio da memória e frêmito
por onde o audível canto exaure
as suas loucas odisseias? —
Ah! que estranha coisa equilibra
esta adaga a arder sagas em
minha carne? e detém o tempo
nutrido de mistério, ânsia,
larva, alarde, alarido, sêmen,
cerne da morte e esquecimento,
mas que compõe as peças vivas?
Sustentar o sonho e a canção
com o heroico e doloroso
ato transcendente de ser
e, flamante de enganos, ter
cumplicidade na beleza,
leveza, ideais, fundamentos,
argamassa e mais coisas densas
— que me formam essência e sopro —
mas disfarçam em paralelos
fios a palavra geométrica?

II

Eis o que proclamo no ofício:
causar o abismo da invenção
e elevá-lo ao núcleo do poema;
amordaçar a voz ao canto
e nomear incautas palavras
com os sons de cantantes sílabas
para que celebrem o evento;
ser a contextura do mágico,
o inconsumado espaço da ávida
espera e do silêncio espesso.
Da farsa, do heroico, do trágico,
do místico, mítico e fálico,
protagonista. Com absurdos
momentos que, se me trabalham
com suas máscaras e seus guizos,
sustêm-me em falsa eternidade
(porque a morte já em cena
encena agitação pretérita).
Ser sopro e milenar evento
de vão gesto que reaparece
entre fanfarras e penúrias
de minha humana contingência.
Ser de herança ancestre guardiã
e, dela, a audácia transbordar
em verso a razão do artificio.
Ter o encantatório poder
que faz resplandecer na forma
o súbito existir da ideia
e a amálgama de um deus que cria.

III

Exposta, exposta a solidão
e aclamada a sua dialética.
Pobres, eu e esta solidão
nos encontramos saciadas,
colhida a sua seara efêmera
— bagos de angústia que me nutrem
com licores de essência amarga.

Quem me levanta e me desprende
e a memória acerta ao sossego
e a tela fia o tempo alegre
o que não tive e não me leva?
Ah! solidão, silêncio espiga
e farpa em minha paz, dor sombra
vertiginosa e memorosa
que me envolve e me transfigura;
é fogo que aparenta gelo,
flor e espada, delírio e périplo
e crivo e funda em minhas carnes,
origem cega e náusea fria,
conjuro ao canto, ao sangue e à seiva,
proclamação desta agonia.
Frágil deus consumando. A mim,
solidão, por que desesperas?

IV

No incauto canto proclamado
que ouvido a ele se abrirá
e dele possa colher flores
de retórica para a neófita
aleg(o)ria do poema?
E em tempo itinerante fluir
e transformar além e aquém
a essência e a volubilidade
destas coisas im/perecíveis?
no âmago das causas ser rocha,
roca, tecendo o passageiro
enquanto real, definitiva
ser rude lucidez do enigma.
Fluindo, fluente, comovente
ser a voz que sussurra, grita,
clama, berra, desespera entre
aspereza e aveludamento.

Tão puro e tão sentido o ofício
que ele possa me afirmar Poeta
vocal, vogal, embora amarga.

***

POEMA À GARCIA LORCA DO RIO CIGANO

                                                             Para Stella Leonardos


Águas do Guadelquivir,
ai, que cordas de guitarras,
que caminhos de enganos!
Estão presas por correntes
do sáfio ferro de vento.
Quem toca breve saeta
que a brisa se comove:
alegres sinos de Córdova
ou pandeiros de ciganos?

Ai! madeiras de guitarras!
Ali bordões que de amor gemem!
Ali laranjas e olivais
de aromas enchendo a brisa!

Margens do Guadalquivir,
quem te vê e não te ama?

Céu de cobre, céu de sangue,
rompe a tensa veia roxa.
Mancha o rio. Sonham nuvens
nos altos balcões da tarde.
Botões de estrelas se abrem
faroizinhos. Noite escura.
A lua é branca serpente
que se enrosca margem a margem
na rio Guadalquivir.
As candeias tremem luzes
desde as tendas dos ciganos.
São vermelhos açafrões,
no negro corpo da noite.

Que bela vem a Preciosa,
águas do Guadalquivir,
esperar por seu amado
que pelos caminhos vem
a sonhar, em seu ginete,
lá das bandas de Sevilha!
Entre juncos e oliveiras
com suspiros abrem mantos.
Já as sombras se conjuram.
As árvores fingem tendas.

Margens do Guadalquivir,
quem chora triste canção
que de longe o vento traz:
dobres sinos de Granada
ou as ânsias encarnadas
— camélias incendiadas —
já em peitos de ciganos?
Cheira o sangre, espesso líquido
no fino olfato do tempo.

O vento emudece os gritos.
O vento emudece os gritos.
O rio cativa o medo.
Um punhal navega a carne,
carne enxuta, seda e azougue.
Cem éguas descompassadas
buscam seus ginetes mortos,
lambendo o sangue das águas.

Rio de arcanos segredos,
Quem te vê e não te teme?

Águas do Guadalquivir,
ciganinho venha ver
duas luas luazindo.
Que a noite toque pratinhos
para o menino cigano
— moreno corpo de espada —
dançar rindo às duas luas.

Duas luas com feitiços
deslumbram o menininho.
Duas luas ali se banham.
Uma delas os ciganos
imaginam seus anéis.
Com a outra luazinha
vão fazer punhais de prata.
No cio do rio profundo
duas luas ali se enganam
— são dois cravos desmaiados
sob o leque de enganos.
Um potro corre ligeiro
levitando medo e sonho
neste móvel corpo denso
onde ciganos se banham
em sêmen de lua e vento.
Que agonia de estrelas!
Que tremor na brisa branda!

Negros cascos, noite negra
de medos, pressentimentos,
ferem turvos pensamentos.
Fogosos cavalos negros
por negras estradas vão.
Homens da Guarda Civil
de silêncio encapuçados
carregam agonia e morte
em suas concretas armas.
Sangue em postas, de ciganos,
duros peitos decepados,
sonham negros cavaleiros.
Nos caminhos abstratos
crescem túneis de espantos.
A noite camufla medos
e mata acontecimentos.

Ah! triste rio de enganos,
quem te vê e não te chora?

Águas do Guadalquivir,
quero luazinha de prata,
teus breves peixes de nácar,
teus lírios bramindo o corpo,
tuas vozes, teu tremor,
para o meu cigano Lorca.
Que me espera com guitarras
e navalhas de Albacete.
E me espera com suspiros,
com a pele sazonada
em canela e em jasmim.

Quem toca alegres campanas
em campanhas de ciganos?

Águas do Guadalquivir,
que caminhos de enganos!


quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Luís Carlos Guimarães - As Cores do Dia


No seu segundo livro de poemas, As Cores do Dia, Luís Carlos Guimarães  mostra-se resolutamente maduro em sua poética.

Os poemas presentes no livro são enxutos, de modo cabralino, com conteúdo bastante substancial e direto, sem utilizar-se de narrativas baratas para aumentar a largura dos poemas. Falam de coisas complexas e simples, como a figura da palavra, do rio, do quarto, do dia, destrinchando a significância dos signos, destilando-os até ficarem irretocáveis.


***




A PALAVRA

Explicita, impressa ou
manuscrita, a palavra
se destaca, inteiriça,
ao olho inquisidor.

Visual (a imagem
esculpida no papel,
peso e contorno
de vogais e consoantes

entrançadas), de-
fine sua exata ou
imprecisa anatomia,
destila seu mel

e consome sua luz.
De agudo sal, ácida,
deixa vestígio na boca.
Por ambígua, tem gume

dúplice, espelha
quem a vê. Múltipla,
forja as cores do dia
e as vísceras da noite.

Pela dureza do metal
percute nos tímpanos,
estilhaço de vidro.
Tanto pode ser:

flor de estufa,
fartum corrosivo.
Gema polida, de ga-
rimpo subterrâneo,

acerada pelo fogo.
Poço ou túnel sem
saída, ilha sub-
mersa, o estupor.

Tapume da lua,
ostra na concha
amordaçada, miasma
de paul, azedume

de mosto, mas que
lume transparente?
Nódoa no sol, pro-
jétil no tambor

da arma, que
fere o alvo se
a disparam com
mira certeira.


***

O RIO

O rio se nutre
de nuvens. Da
nascente à foz
sulca o pulso da

terra, semovente.
Músculo tenso, a
correnteza tem a
força compacta

de um punho. Fle-
xível, o corpo
líquido (cobra
coleando na areia

ou tapete que
se desenrola )
navega o leito
contido nas mar-

gens, suas amarras.
Intumescido pelas
chuvas transpira
nas várzeas, ferti-

lizante. Contraído,
flecha a garganta,
e galgo no salto
vai à caça, tocaia

o mar desde as
cabeceiras. Nas
gamboas, despo-
jado das vestes

curte a pele ao sol,
nu. À sua passagem
o verde se levanta,
os mangues fermentam

na lama. O negro óleo
das águas redondas
fecunda cidades, no
abraço das pontes.

Surdas pancadas de
remos arrepiam-lhe
o dorso. Horizonte
de mastros e luzernas
— a fera domada,
sem garras, as crinas
eriçadas no galope,
desagua no poema.

***

O QUARTO

O quarto, o inverso
da joia, resplande-
ce por dentro, fruto
sob a casca, encerra-
do entre as paredes.
O dia explode pelas
frestas, flamejante:
delimita sua extensão
e profundidade. Não é
uma peça inconsútil, a
janela vigia — pálpebra
fechada ou olho aber-

to — mirante. Íntimo,
arredonda as formas,
sem arestas. O teto
de estuque, céu bai-

xo com uma luz
no centro, estrela
solidária. Acolhe
o sono e a palavra

do homem, sem eco.
A noite no quarto
é maciça, submarina;
tem peso e espessura,

e não caminha. Mas
basta o ato, o tato
farejante, a lâmpa-
da acesa, o pasmo,

o alarde, o grito.
Não é como barco os-
cilante, sem raízes.
Fixo, como a árvore

se alicerça ao chão,
duradouro. Carnal,
atordoa o ventre
encoberto, a nudez

sob as vestes. Não se
entrega a quem está
de fora: abrir a porta e
entrar é possuí-lo.

***

O DIA

O dia, a venda
ainda nos olhos,
escava fendas
na couraça, madruga.

Rompe o cerco
da noite, em ondas se
espraia, rastejante.
Sanguíneo, mancha

o ar, embebe as
nuvens de vinho.
Agachado, pênsil,
move-se na clareira

como bicho sem
vértebras: o faro
arma o salto sobre
a presa, sem falhas.

Rapinante, afia
o gume no vime
das malhas; no
saque ara brilhos

de espelho polido;
desfruta o lume do
levante, seu nume.
Na vertigem cia queda,

o fulvo fruto em
chamas golpeia
 com fragor os
tambores da manhã.


***

A CASA

I

O olho, à distância, vê a casa:
apenas olha, não a investiga.
Assim como se olhasse, de relance,
uma fotografia. A casa, na lonjura,
conserva o sigilo intacto
e, esquiva, não se deixa
violentar. Severa, não se reparte,
encravada no chão, mineral,
casa antiga, colonial.

II

Na casa antiga
o pensamento
aguça o olhar
e a descobre

em profundidade,
com suas raízes.
De fora, a casa se
apresenta estranha:

entrando, não me
pertenço, integro
sua intimidade,
a convivência

de seus mortos. A casa
tem longos corredores,
canais afluentes
de salas e quartos,

onde, sonâmbulo,
o tempo corrói piso,
paredes e teto,
neutro e geral.

***

GALO LIBERTO DE CRÔNICA DE NEWTON NAVARRO

O galo,
no quintal,
penas e canto.
O agudo olhar,
peça de cristal,
mergulhava
nas volutas da crista.
Imóvel,
na invenção da curva
sinuosa,
o flocudo pescoço,
o bico aguçado
no traço arqueado
que a cabeça erguia.
Ave incendiada
em ricos amarelos,
em rubros,
em azuis
de leve fogo
de álcoois
triturados pela chama.
O que se gerava
no movimento contido
do bicho?
— A luz natural
da manhã chuvosa
na seda da plumagem.
Aveleveza,
pluma,
voo pousado
a se librar no espaço,
urdindo o desenho
da tapeçaria.
O leque da asa
afirmaria o voo
a nascer do mistério.
Comprometeria
a manhã o cântico
glorioso?
— O canto o desarmaria
do seu peso,
da armadura
de ave intacta.
O galo,
isento da realeza,
o corpo sangrento
na pedra da mesa,
e a censura do olho.

***

O GALO DA TORRE (IGREJA DE SANTO ANTÔNIO)

Entre o chão e o voo,
por dia e noite, o galo,
empoleirado na torre, só.
Galo sem terreiro, cúmplice
da solidão circundante
dos telhados. Galo fixo,
fundas raízes na torre,
quando na terra o
exato ofício do canto
propiciaria, dono das
fontes da vida; ou morto,
posto à mesa, encerra-
ria o familiar domingo,
alimento em bocas ávidas.
No horizonte da cidade,
incrustado na paisagem,
o galo. Como resiste
assim imóvel e vertical
na vizinhança do azul,
entre nuvens, brisas e aves
(celestes e itinerantes),
com o canto estrangulado
na garganta de metal?

***

O CURRAL

Vacas no curral, sono-
lentas. Leite no ubre,

úbere. Cascos rompem
o ar lustroso de

moscas. Fezes secam
ao sol: estrume.

Vacas, no curral
comum, ruminam.

***

A PAISAGEM

Nuvens e
                        pássaros
celestes.

                        Mastros
                        na tarde
                        calcinada.
                        Barcos oscilantes.

Mar. Além,
a linha do horizonte,              longe.

***

O CACTO

Palma vegetal:
olhemos o cacto
ao natural,
intacto.

Aberto um sulco
na pele,
escorre o suco
da vida,
ferida.

E reverdece
a raiz
de novo cacto
na cicatriz.

***

A IGREJA DO ROSÁRIO

Quem a vê a distância
(de certo recanto natal),
não a concebe terrestre,
no mesmo plano das casas.
Pois construída na altura,
a velha igreja do Rosário
é nave ancorada no ar
— arquitetura de anjos
debruçada sobre o rio.

***

ROMANCE PARA FEDERICO GARCIA LORCA, À MANEIRA DO POETA

I

Em cavalos cor de âmbar
— os cascos batendo o chão
de jacintos e de nardos —
carabineiros passavam
na noite recém-nascida:
punhais fincados na cinta,
os pés firmes nos estribos,
as mãos seguras nas rédeas
e a palma cias baionetas
com seus brilhos acerados
despontando dos fuzis.
Ia entre eles Federico
as mãos atadas em cruz:
voz ferida na garganta,
bagas de suor e sangue
queimando a rota camisa.
Sentia agulhas de frio
na larga fronte morena,
mirava a morte fronteira
entre noite e madrugada,
desfraldando os estandartes
em direção à Granada.
Com os olhos bem abertos
e os sentidos alertados
tinha a vida mais de perto
porque sabia o destino
que lhe fora reservado.
Assim via na paisagem
acampamentos gitanos
e pela margem da estrada
ouvia pandeiros cavos,
guitarras dilaceradas.

II

Ai, varandas e telhados
cobertos de fina ardósia,
sabor de cerejas rubras,
travo de almíscar e canela.
Ai, os celeiros vazios
de farinha, azeite e pão.
Ai, porque em Fuente Vaqueros
sujas palavras de sombra
fermentaram a delação.
Ai, ginetes fugitivos
pisando pedras desnudas,
as crinas feitas em chamas,
nos olivais acendidos.
Ai, na campina cinzenta
o tênuo canto dos grilos
voando alto com a brisa.
Ai, que as tardes da memória
recendem a mirto e laranja.
Ai, os corações de púrpura
das romãs desabrocha.
Ai, Ignácio Sanchez Mejias,
vísceras cheias de sol,
morto na arena sangrenta
de sua última tourada.
Ai, os colares de flores
e as espigas amarelas,
entrelaçadas no vale
com eriçadas urtigas.
Ai, luar vivo no prado,
em copa de limões verdes,
pelos caminhos bordados
de amapolas e açucenas.
Ai, as fogueiras nutridas
de juncos e cedros secos,
devorando povoados
com suas línguas ardentes.
Ai, Espanha de Albaysin,
Puerta Real, Sacro Monte,
Alhambra, Sierra Nevada
e de Fuente de Avellano.
Ai, que a Espanha tem fome
de liberdade e de paz.

III

A noite findou sua ronda.
Na alva acendendo a colina
um galo no horizonte
arremessou o seu canto
de cristal estilhaçado.
O perfil contra o luar
fenecido em céu distante,
não dizia de seu rosto
de uma estranha palidez,
mas a aurora caminhante
iluminando-lhe a face,
estampava a confiança
que germinará semente
a ser plantada na vala
com o sangue e a esperança.
Garcia Lorca era o alvo
do pelotão já formado
com armas postas ao ombro.
A venda que lhe puseram
não empanou a visão:
sem calafrio de medo
encarou a morte amarga
vomitando suas balas,
raiando estrelas de sangue
no seu peito de andaluz.
Ai, poeta martirizado
na serena Andaluzia
enlutada por irmãos.
Torsal com medalha de ouro,
lembranças de sua mãe,
feitos moedas pagaram
o acre vinho da morte
e desde então as papoulas
mais vermelhas do que são
vêm do coração de terra
do seu corpo sepultado
pelos campos de Granada.


***

O PAI

Neste outubro,
aos sessenta anos,
vais de encontro à vida.
De pé,
frente à serra,
na tua manhã,
o olhar ampliado
pelas lentes,
consultas o horizonte
com a sabedoria
herdada dos teus antepassados
que aprenderam
com a terra,
e mortos,
agora,
são
velhas árvores,
barcos,
homens,
renovados
pelo incessante movimento
da vida.
Lúcido,
profetizas
somente invernos
— verde nos campos,
vazantes fecundadas
pela água primeva
da criação —
pois não nasceste
sob o signo amargo
das catástrofes.
A fugitiva cabeleira
alargou tua fronte,
tua magreza atual
esculpi
um rosto anguloso,
severo,
patriarcal.
Tua sábia
mão
lavrou chão,
manejou arado
e enxada,
colheu maduras
espigas cor do sol
e o branco algodão,
construiu açudes,
amansou violência
de correntezas,
apascentou ovelhas
e bois
na campina,
no claro da manhã,
à sombra da tarde
repartiu pão
e sonho
com teus filhos,
escreveu em grandes
livros
escrituras,
contratos,
inventários,
na tua dúplice profissão
de fazendeiro
e escrivão.
Ah tuas mãos
companheiras das minhas,
atravessadas
pelo tempo
em vincos profundos,
marcadas pelas linhas
da vida
e da morte,
generosas,
abertas sempre
para o ofício
da amizade.
A bondade
é tua dádiva
maior.
A água de tua fonte
dessedenta a sede
de todas as bocas.
A tua mesa,
como um justo,
distribuis alimento
a convivas,
apaziguando
fome antiga
e pobres.
O visionário
que és
vai morrer
contigo:
reivindicas
um mundo de pão
e paz
para os homens.
Gravo no poema
teu nome
— João —
limpo,
simples,
bíblico,
que o tempo
não apagará.


                                               Outubro, 65.



***

CANTIGA DO PRIMOGÊNITO

Dorme, meu filho.
Porque infante,
uma estrela guia
o teu sono. Amadurece
o dia nos teus olhos.

Dorme, meu filho.
Que tua paz seja franca,
sem cor de alegoria.
Não a da pomba branca
na campina radioativa.
Não a da rosa envenenada
no estrôncio da madrugada.


***

NAVEGRAMA PARA VALENTINA TERECHKOVA


E(n)     volta
astro    nave
giras    sol
gira
  só                              Valentina
gaivo   ta
               es
                 p     aço
                        azul     girasSOl
                                            VIa     já
                                             É       ter
                                   ValenTI      na
                                             COr   ação
                                                                       mundo


***