sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Antonio Pinto de Medeiros - Rio do Vento

[capa: dorian gray caldas]


Rio do Vento é o segundo livro de Antonio Pinto de Medeiros. Publicado em 1951, às custas do próprio autor, tendo uma segunda edição em 1984, pela NOSSA Editora/ Fundação José Augusto.

Assim como em Poeta Atôa, os poemas do livro são eclesiásticos, surrealistas, questionando com seus enigmas sobre o tempo, a aventura, a fé, a morte, temáticas que orbitam em um tom melancolicamente soturno.

Abaixo, alguns poemas do livro:

***

ENIGMA NÚMERO DOIS

Virão nas horas completas
Em caravanas sinistras
Trazendo capuzes negros
E albornozes de mouros
Pelos caminhos estranhos
Que a fantasia sonhou
Para um conflito de enigmas

Os olhos débeis e úmidos
Serão esferas perdidas
Dentro de um mundo julgado.
Não criarão as paisagens
Da infinita promessa
E tombarão as sementes
Em leitos de pedra e espinhos

Virão nas horas completas
Entre harmonias soturnas
De blasfêmias e de salmos
E o outro canto perdido
Envolto em cinza dos ídolos
Será o incenso sagrado
Do rito negro e fatal

Entre turíbulos vivos
E flores do sacrifício
Buscarão as mãos sacrílegas
A pedra da redenção
E haverá cruzes e máscaras
Entre relíquias e fumo
Alimentando o braseiro


E os olhos débeis e úmidos
Serão esferas perdidas
Dentro de um mundo julgado
Não criarão as paisagens
Da infinita promessa
E tombarão as sementes
Em leitos de pedra e espinhos

***

ENIGMA NÚMERO OITO

Loucos olhos bovaristas
Entre castelos de névoas
Vestidos de luz e som
Loucos caminhos em curvas
Caminhos das aventuras
Mistérios suspensos no ar.

Em caminhos de aventuras
Loucos olhos bovaristas
Que personagens se fazem
Para o proscênio de mundos
De mundos que se desprendem
Do eu-sopro da criação.


Loucos olhos bovaristas
São crianças que caminham
No barco do alumbramento
Para o bailado dos anjos
Que sepultaram nas nuvens
Os fantasmas dos limites.

Caminhos das aventuras
São os caminhos que vão.

Neutra viagem de volta
Tristes olhos subjugados
Pela poeira dos sonhos
Pela sombra dos proscênios
De mundos que se desprendem
Do eu em reparação.

Caminhos das aventuras
São os caminhos que vão.

***

ENIGMA NÚMERO DOZE

Homens de luto
E olhar de outono
Riscaram fósforos
Na hora incerta

Decapitados
Tombaram todos
Os pensamentos

Morta a lembrança
Do canto ausente
Do companheiro
Perdido em sombras

Cheios de sangue
A dor e os sonhos

Para bem longe
O desespero

Noturno arrasta
O somo de minha
Voz na infância

Enquanto as flores
Perdidamente
À luz se agarram

E a vida em pânico
Da pedra nua
Não brotará.

***

POEMA DO DESEJO IMPOSSÍVEL

Quero as lágrimas perdidas
E os risos perdidos
Os risos inúteis
E as lágrimas de sal.

Quero os versos à toa
E a fé que herdei.
A fé que perdi
E os versos à toa.

Quero de novo o sentido da vida
E a alegria mãe,
A alegria extinta
E o sentido da vida que eu próprio matei.

Mas quero sobretudo as bolhas de sabão... 

***

ILUSKA, O SONHO E A MONTANHA

Reviver entre canções desconexas e cansada luz
O sortilégio febril e o rastro de sangue
Da que já é o fantasma intemporal e vago
E para sempre o anémico e rígido silêncio.

Recriar entre névoas mansas e sons indecisos
O ritmo ardente e os caminhos de aventuras
Da que já é a longa e indecifrável ausência
E para sempre a parda e descarnada mudez.

Jamais o céu baixando sobre o bailado em fogo
Que surgiu da neblina para o palmo quadrado da montanha
Molhados de sargaços os cabelos deslumbrados de manhã.

Jamais o mar estendendo os braços suplicantes
Para o braseiro em que louca dança o louco sonho
Um raio de sol na face e uma estrela na mão.

***

TERCEIRO DOMINGO DE QUARESMA

Terceiro domingo de quaresma.
( os meus foram domingos sempre roxos:
domingos de pés descalços e nenhuma sombra,
depois domingos órfãos de olhos baixos,
domingos de mãos postas e turíbulos
e, enfim, domingos de uma inutilidade irremediável.)

Terceiro domingo de quaresma
Fecundo como a inocência
e o pecado.

Tragam as ânforas
Que as pedras estão
À espera da semente.
Não estranhem que eu tenha
Três vezes adorado o canto
da vida na manhã

E descoberto que há uma trombeta
em minha infância
E que a memória me tem
mentido.

Terceiro domingo de quaresma
Procurem o primeiro pecado
E não me apedrejem
Se eu publicar o meu amor milenário
numa nuvem
Ou atirar montanhas sobre o mar,
Em cujas águas os destroços
passam vogando,
Onde: outrora velas e a evasão
fizeram passos de dança
E onde em vão aquela mulher desejada
Teimou em reencontrar uma
sensação perdida.

Terceiro domingo de quaresma
Asas roçando no charco em reparação.
Ajudem-me a espantar os meus fantasmas.
E a perseguir o séquito de sombras
Que teimam em descansar à
margem de minhas saudades,
Em renovar as raízes e reencarnar
mistérios perdidos.

Terceiro domingo de quaresma,
Mais frias as cinzas,
Mais fortes as ressonâncias
Talvez um meridiano em minha
história de capa e espada.
Plantarei enigmas,
Ouvirei insensível a ordem de capitulação
E multiplicarei aos quatro cantos do mundo
Uma solidão salpicada de sangue.

***

VIAGEM

Os ventos trazem alegorias
Mas não conduzem mensagens
nem quebram o silêncio descarnado
Que monotoniza a lâmpada furta-cor,
O livro aberto à página trinta e três
E o globo da sala de geografia.

Vamos, então, viajar.
Tive amigos que foram para sempre.
Outros voltaram.
De Caiena, das ilhas sem nome,
De além da noite,
Dos quatro cantos do mundo,
E a vida elevaram ao infinito.

Levavam consigo as amadas
— morreram muitas de febre —
Ou o companheiro de aventura,
Ou a máquina de escrever,
Ou a dúvida — quase sempre —
Ou a sombra, um grande pecado e o remorso.

Você não possui nada disso?
A amada não houve
O amigo morreu
A máquina quebrou
Você não duvida
Você não tem sombra
Você não pecou?

Não entregue ao desespero
Seus sentidos e sua alma.
Embarque sozinho
Procure tesouros
Percruze florestas
Conheça o faquir
Profane pagodes
Componha haicais
Visite Hiroshima
Encontre-se a si.

Você é mulher
Você não tem nome
O filho no ventre
O filho sem pai
Não quis abortar?
Viaje assim mesmo.

Leve o vidro de sais,
Duas mechas de algodão,
Não dê adeus a ninguém,
Não agradeça conselhos,
Não pense no suicídio
E vá ter o filho bem longe.
Bem longe.

***

POEMA POR DEMAIS EXPLICATIVO  

Não sou irónico não.
Infelizmente não sou.
E meu ritmo é confuso.
Mas não me culpem porque
Nasci no quilômetro trinta e seis,
Os anjos de cara suja
Profetizando em deboche
Os vagabundos que há em mim.
Outros - filhos da luz -
Começaram a viver do ponto zero
Não foram prolongamento
Não foram metamorfose
E não são culpados da própria felicidade
E do rio que corre em seus domínios
E da mina de ouro que
Está nas suas terra e
No seu coração. No coração sobretudo.
O caminho não é meu.
Sou negativo. Meu ritmo também.
Estou viajando para nenhum lugar.
Sou antilógico. Antidiurno.
Nem sequer para a noite glacial.
Sou antiburguês. Antiprevidente. Antianalítico
até o desespero.
Meu sonho é mudo e minha visão convexa.
Desde criança invento minha paisagem
E crucifico minhas lembranças e meus fantasmas
Apostolicamente de cabeça para baixo.
E desfio as horas cinzentas
Sobre minha sombra molhada.
Chega. Este poema está saindo por demais explicativo.

***

CARTA AOS GENTIOS SOBRE O HOMEM CHAPLIN


O que está saindo para a última ronda ao sol
— Cartola, botas, bigode, bengala e alma —

O que ao mundo e à luz trejeita, esgarra e ri,
— os letreiros, os cartazes não dizem —

não é, meu irmão chin, esquimó ou fueguino,
O que dará o último passo sozinho.

***

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