terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Nei Leandro de Castro - Autobiografia

[foto por giovanni sérgio/ capa por cláudio alvarenga]

Livro publicado em 2008, pela Coleção Letras Natalenses, é uma breve autobiografia poética, rememorando a cidade e suas vivências, ora com um olhar de menino, ora com olhar de um sedutor.*

* - agradecimentos ao Sebo Vermelho pelo apoio e empréstimo do livro.


***


EPITÁFIO PARA O GRANDE PONTO
Aqui jazem
as melhores lembranças,
os primeiros sorvetes,
o furto dos chocolates,
as conversas mais bestas,
os seriados do Rex,
os porres terríveis,
a adolescência apaixonada,
os comícios de esquerda,
os poetas sem juízo.
E na lousa de asfalto
escrita a canivete
a palavra solidão.
***
DONA SALOMÉ

A viúva Salomé
frequentava todas as missas
e vivia solitária, de janelas fechadas
como numa clausura.
Um dia, foi vista dançando rumba
em seu quintal de muros altos.
Levantava o vestido
como Maria Antonieta Pons,
e mostrava, no entroncamento das coxas,
sob a calcinha de cor clara,
um volume de atordoar.
Quando quebravam as vidraças de sua janela,
ela apareceu na varanda como um demônio.
Jurou biblicamente que cortaria a cabeça
do canalha atirador de pedras
e a entregaria de bandeja ao delegado.

***

DOUTOR CHOQUE

Apoiado na bengala,
sério, vestido de linho,
ele passava na rua
infestada de meninos.
De repente dava um pulo,
seu corpo se sacudia,
como se levasse um choque
de poraquê ou de fio.
E vinha o coro cruel:
- Doutor Choque! Doutor Choque!
e ele em seus estertores,
em seus tremores de morte.
Depois da crise, os meninos
corriam mais do que cães,
aos gritos do Doutor Choque:
- É o boga da mãe!

***
O COLÉGIO DA INFÂNCIA

O colégio de padres era infernal.
Rezas, repressões, castigos
e ai de quem cobiçasse
as mangas que perfumavam o quintal.
O padre diretor escrevia
e publicava, sem piedade,
os piores livros da humanidade.
Do seu púlpito, com voz de castrado,
ele ameaçava a todos
com um Lúcifer, príncipe das trevas,
que jamais sorria em sua danação.
E o padre sorria? Também não.

***
MARIA MULA MANCA

A mendiga Mula Manca era um espanto
de feia e valentona.
Tinha a espinha dorsal
curvada por uma carícia
de Belzebu, seu amigo íntimo.
Vagava pela cidade apoiada em bastão
que também era tacape e lança,
se alguém ousasse dizer: Mula Manca.
À noite, quando a lua não era indiscreta,
sob os fícus da Praça Pedro Velho,
ela juntava cinco, dez meninos,
em fila ansiosa, mas bem comportada.
E abria para todos, um a um,
o seu sexo largo, profundo e encardido
como a mochila em que ela guardava esmolas.

***


Um comentário:

Marcos Massena disse...

Muito bom