quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Antonio Pinto de Medeiros - Um Poeta Atôa





Em uma matéria ao jornal Tribuna do Norte, em 2007, Sanderson Negreiros escreveu: "Toda minha geração, que amanhecia para uma existência cujo quase único compromisso era com uma solução estética, literária, encontrou não seu guru, mas alguém que, à custa de ter ido além do horizonte acanhado da província, fulgurava como medida além do equilíbrio das coisas. E Antonio Pinto desequilibrava realmente as fitas métricas da definição humana. Auto-destrutivo, rendeu de si, não uma mensagem existencial, mas uma exceção honrosa de ser, a partir de um destino construído entre contrastes e antíteses."

Antonio Pinto, nascido em Manaus, mas criado pelos arredores de Natal, foi um dos primeiros escritores da cidade de Natal a usar do verso livre na sua escrita, com um vocabulário de imagens poderosas, e também foi um importante crítico literário - recusando até mesmo uma cadeira na Academia Norte-riograndense de Letras, por se considerar "anti-acadêmico demais"- era conhecido como "O Terror do Intelectual Medíocre", que, ainda, segundo Negreiros: "Escrevendo sob o pseudônimo de Torquemada, teria sido injusto nos seus julgamentos se não fosse, antes de tudo, um rebelde a não aceitar a mesmice cultural como dom definitivo da província. Fez um trabalho decisivo em não aceitar que os medalhões dominassem com seu azinhavre o espaço de ingresso aos mais jovens.". Incentivava também novos autores em quem reconhecia talento, como foi o caso de Zila Mamede que o considerava um mestre. Publicou dois livros em vida, e tem um inédito, ainda a ser lançado.

Abaixo, alguns poemas de seu primeiro livro, "Um poeta Atôa":



***


MINUETO
Bailam diante de mim o desejo e o tempo.
Mas o silêncio — luto fechado —
Acabou de sepultar um de seus mortos.
E aquelas ondas inquietas
Não viram a face parada
Nem o véu imóvel.
As sombras e os livros nem despertaram
Para o réquiem
E até o céu é um deserto de cinzas.
***
DELÍRIO
Despertaram o silêncio
E ataram-no pés e mãos.
Trouxeram as cinco dimensões
E Portinari e os painéis.
Mergulhou na estrela menor
O olho que sangrava.
Transparente transparente
A mulher que não devia ter vindo
E foi parar na fogueira
Por ter desejado o anjo da guarda
(Perdoai-lhe, Senhor !).
Rondó alla turca arlequinando
O miserere mei, Deus.
E o pó embalsamando a alma alquebrada,
Que dormira sozinha no antiteatro abandonado.
E o bailado das três flores secas, secas.
***

ELEGIA DA CARNE DE CARMEN

Tiraram Carmen do ventre das ondas
Numa tarde como outra qualquer.
Um resto de vida sem cor era Carmen
Quando a tiraram do ventre das ondas.
Onde estão agora os passos perdidos,
Os olhos incertos e os gestos de afago
Vendidos à tôa, por preço qualquer,
Na feira livre dos passos perdidos?
Que será feito das mãos indecisas,
Das seios, das tranças, dos lábios, do ventre,
Da carne de Carmen que o mundo explorou
No fogo das lutas em leitos de amor?
Por que ressurgir no vale da morte,
A busca da alma, como outra qualquer?
***


SONETO À TÔA

A morte ha de vendar-me os olhos rebelados
E me transformará, com um riso de mofa,
Numa velha caricatura boschimana.
Passarei do ser ao não ser e o encantamento
De outras paisagens vai fazer de mim
Um confuso turista de outras vidas.
Plantar-me-eis pobre e nu como nasci.
E ao primeiro dia voltarei, com o tempo.
As chuvas serão prodigas e a terra avara
E sábia não fará brotar a semente inútil.
Nascerão flores e os ciprestes vetustos
Hão de cumprir a missão de matar o tédio
Da imobilidade e do silêncio atroz,
Embora eu desejasse música para violinos.
***


ODE À PROSTITUTA SOFIA QUE SE MATOU NO MAR
Satanicamente bucólica a paisagem
Perdoe-me, mas todas as flores se abriram E os sons orvalham até a alma trapista

               daquele maníaco que acredita

                na própria inexistência.

Qual será a cor desta hora perdida?
Veja imóvel aquela sombra de face no muro grisalho
E não ame para não quebrar a paz.
As ondas acordaram cobrindo o cadáver de Sofia
A que vendeu a alma e o corpo
Para comprar aquelas sandálias
E a fita desbotada que ainda lhe prende os cabelos.
Ninguém escreverá sobre as águas castas
Um epitáfio. Nem o nome sequer.
Estão perdidos todos os segredos das noites antigas.
Satanicamente bucólica a paisagem.
Não ame para não quebrar a paz.

*** POEMA DO DESEJO IMPOSSÍVEL

Quero as lágrima perdidas E os risos perdidos Os riso inúteis E as lágrimas de sal.

Quero os versos à tôa E a fé que herdei, A fé que perdi E os versos à tôa.

Quero de novo o sentido da vida E a alegria mãe, A alegria extinta E o sentido da vida que eu próprio matei. Mas quero sobretudo as bolhas de sabão.
***


POEMA SEM TÍTULO

E mesmo que a música se extinga,
Mesmo que para todo o sempre ela se extinga
(que eu não veja quebrados os alaúdes e as harpas
nas águas dos rios que por Babilônia vão),
Quando desaparecerem os sinais de sua passagem,
Quando o fim e o princípio se confundam
Num abraço de morte,
Mesmo que a luz se extinga,
Mesmo que para todo o sempre ela se extinga,
Eu voltarei peregrino do mesmo caminho.

***


O QUE AINDA NÃO É O MEU POEMA ALEGRE

Cada canto do mundo terá um turista.
Os berços sonharão com o bosque da lenda
Que o tempo quis extinguir.
A luz descerá sobre o estigma de todas as vidas
Mas nascerá das chamas um novo fénix.
A noite até ouvirá todas as canções antigas.
Não banharei, talvez, em sangue, meus lábios roxos,
Mas haverá um gosto infinito de lágrimas por ai.

***


POEMA DA CANÇÃO PERDIDA

Não lhe farão coro as águas escravas
Nem as nuvens libertas
Nem o eco dos ais perdidos
Nem o vento dissoluto e nu.
Tombará no vácuo inútil
Sem caminhos e sem abrigo
Como um desejo morto.
***

ENIGMA NÚMERO 1

Mas o diálogo não haverá. Andarilhos estranhos
Caminharemos dentro das horas em estranha aventura.
A luz que me embalsama dar-lhe-á infinitos tamanhos
E pesará sobre mim a profunda tortura
De ser um. Copiará descuidada todos os meus gestos.
Imitará minhas formas em trejeitos de deboche
E não gastará os músculos mortos e os membros infestos
De fantasma irrequieto ou cínico fantoche
Banharei em suor seu corpo sem alma
E amargará minha boca. O sangue e a caridade
Não a tocarão. E o cansaço de todos os homens não vira.
Baquearei ante a morte. Indiferente e calma
Retornará, também, para o nada ou a eternidade,
Como eu sem migalhas de bem. Mas o diálogo não haverá.


***


HISTÓRIA DO CAVALO NÚMERO 7
Pois a vida secou como uma tísica
E a força magica dos olhos absortos
Fez do mundo quase um ponto geométrico,
Enquanto os braços inquietos pediam o fim.
Tragam asas para o cavalo número sete
E uma rima para o amor.

***

POEMA DO TRANSFIGURADO

E se nada acontecer?
Se os rostos deformados e os sentidos mendigos,
Os olhos famintos e as mãos que interrogam,
A carne que sangra desejos
E afoga a regeneração,
Se transformarem na cinza das ausências
E a dúvida acenar, ainda,
Como um profeta maior?
Se o silêncio pesar, como o remorso,
Sobre o grito de angústia
E a esfinge recolher o pranto e o riso do transfigurado?
Se abortarem todos os sonhos
E ele purificar os lábios no próprio sangue
E nada acontecer?

***


ELEGIA DOS OLHOS DE HILDA
I.
Mergulhou, porém, na noite, como as outras sombras,
Entregue ao abandono ansiado pelas mães
Nas horas de vigília.
Reina a paz das ausências infinitas
Envolvendo a insônia dos grandes mutilados
E o nojo cansado das alcovas,
Enquanto o vento amortalha o silêncio e os pensamentos turvos,
As pedras repousam sem a carícia dos passos anônimos
E as raízes repisam a inveja dos libertos.
O encontro divino com a face pálida e fiel
Traz o calor das lágrimas ardentes
Dos olhos inúteis que não nasceram nunca.
II.

Mortos os noturnos heroicos e os túmulos,
A sombra parada no muro e a pedra banhada de pranto.
Não tem cor o véu das mulheres do Cairo.
Os trens hão de passar sem bandeirolas
E as velas nunca surgirão das águas.
Pierrot e Arlequim trarão as mesmas máscaras
E dançarão perdidamente como fantasmas gêmeos.
O encontro divino com a face pálida e fiel
Traz o sabor das lágrimas ardentes
Dos olhos inúteis que não nasceram nunca.

***

ÂNCORAS PERDIDAS AS RAÍZES 

E eu, entretanto, não desejo o mar.
Não quero ver na lamina inquieta
o voo narciso e o supremo orgulho
Correndo em busca das limitações.
Soltas, bêbedas, âncoras perdidas as raízes.
Não, não desejo o mar.
Meus olhos vitrais partidos
Não poderão guardar o adeus branco branco
Nem quererão suster as duas lágrimas
As duas que serão anônimas para sempre
Nem possuirão a carne da última que sentiram.
Não, não desejo o mar.
Para sempre incompleta e exausta a paisagem
Não guardará os meus passos sobre as ondas
E apagará a sombra que eu hei de ser.
Não, não desejo o mar.
***


CONFISSÃO
Sou incômodo e inútil, meus irmãos.
Mas não vos cansarei com outros versos.
Dai-me somente a estrofe que procuro
E eu partirei,
Sem que jamais vos decifrem
Meu último pensamento

***


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