terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Adriano de Sousa - FLÔ

[ capa: Marcelo Mariz ]




Adriano de Sousa nasceu em Alexandria-RN em 5 de Março de 1962. Graduado em Jornalismo pela UFRN, publicou quatro livros de poesia:"Flô" (1998), "O Alvissareiro" (2001), "Saartão" (2004) e "Poesia" (2008). Participou do famoso Laboratório de criatividade da UFRN, na década de 1980, além de ter sido um expoente da geração mimeógrafo no RN, tendo publicado, em mimeógrafo, os livros: "overdose" e " Usura colonial", este último em parceria cm o poeta Antonio Ronaldo.

Para começar a falar sobre o trajeto poético percorrido em "Flô", é necessário ter em mente a assertiva de Claudio Willer, poeta e ensaísta, que diz: "Poesia é o lugar onde a linguagem se reinventa". E é a chegada nesse lugar, que a caminhada literária de Adriano representa. Mas é uma chegada que necessita de caminhada constante, pois não se alcança nunca; e o poeta bem o sabe, pois deixa claro, em sua poesia, sinais de não-conformismo. Atreladas à definição de Willer, é ousável explicitar as reverberações  do poema "Antíode" de João Cabral de Melo Neto. O diálogo é bem demarcado nos poemas "João" e  "Hai-chá", e mais sutilmente em outros, marcando sua autoafirmação através da transmutação dos significados. O que seria "Flô", senão a versão de Adriano da "flor" cabralina?

Fato bem explicitado nas palavras de Thiago Gonzaga, pesquisador da produção literária do RN, sobre o poeta: "Adriano de Sousa possui um texto lírico que alcança seu desígnio como edificação estética, sua linguagem é um instrumento de comunicação praticamente intransferível, ou seja, uma linguagem muito subjetiva, objeto exclusivo do texto em que foi produzida, subordinada às condições de enunciação de cada palavra, tanto na localização quanto nos diversos significados semânticos que sugere."

Em entrevista a Marize Castro, no livro "Além do Nome", Adriano fala sobre o seu livro de 1998: "A ideia era fazer uma imensa brincadeira com a ideia de fazer poesia. E por ideia de fazer poesia, se compreendem autores, cacoetes, estilos, modelos, comportamentos associados ao fazer poético. Então, há desde poemas mais elaborados até brincadeiras que refletem costuras, ideias associadas ao fazer poético num determinado meio, numa determinada época em que eu me movia. No fundo, é um ensaio com ideias soltas, sem nenhuma elaboração analítica sobre poesia ou sobre autores."

Com certeza é mais que 'desconfiável' essa "não elaboração analítica", não à toa o livro, na primeira parte, é marcado por uma investigação do alicerce sobre o qual o poeta se instala. Experimenta, pois sabe que não há novidades e, com isso, empreende uma revisitação ao cânone, chegando, em alguns momentos, a questioná-lo. O poeta não se vale de meras imitações de estilos, de Gregorio de Matos até nomes consagrados da chamada "geração marginal", passando por Auta de Souza e Jorge Fernandes, expoentes da poesia produzida no RN, toma lições preciosas de seus 'mestres', para, logo em seguida, subvertê-los. Ou até mesmo no primeiro instante, de maneira escrachada, por que chamar Bocage de "Bocuge"? 'Desconversa', em certa medida,, por saber que não precisa se explicar ou pedir desculpas, o certo é que Adriano, seguramente,  brinca com suas referências e releituras, "fundando a pátria que os deus o negaram", pois sabe que sua voz não sumirá dentro delas.





Poemas de "FLÔ"

***

Gregório na ilha

Em esta ilha vicejam patranhas

e poltrões, patrões e putanas,

em coito c'oa Coroa e co'a Cruz
a melhor danar a tribo de truões.

Passam, pobres, nobres e monges,
nos cobres o caráter e as vergonhas,

com tal desfaçatez, e viço, e tanto,
que a mim, vilão mor, eis-me santo.

Se deveras a fé remove montanhas,
a bolsa move das gentes monta nã

menor. Demove ódios, cabaços
e leis; aperta ou desata o baraço

que se nos adorna a garganta;
à glória da malta toda barganha

é lídima. Insulado em tal jardim,
concedo-lhes o melhor de mim

na flor de latrina cuja grã façanha
é feder melhor que os meganhas.


***

Bocuge

Não é mesmo flor

que se cheire, o cu.
Mas nem o fedor
não repele o cúpido

e contumaz beija-flor
quando emproa o curso
à busca do palor
apaziguado a cuspe.

Língua, dedos, verga
varam a fauce rugosa
e colhem, às cegas,

a flor sulfurosa
no buquê de merda.
No entanto, rosa.

***

Olavo pira e expira

Última flor do Lácio, inculta e bela,

foi tal o estilo e tanta a gramática,
e eis que definhas em flor asmática
que os poetastros ostentam na lapela.

Ao cabo da jornada, coube-me um cetro
do vetusto mármore em que elevei
o teu estandarte, com ritmos e metros
garimpados no mais clássico veio.

Iguarias que servi em refinadas baixelas
apodrecem ao léu, por demasiado áticas,
no convescote onde a choldra asnática
desfalece de fome, por banguela.

Antes que rebaixem à campa o féretro,
devolvendo-me ao léxico obscuro e feio,
apraz-me insultar a procissão de espectros,
que torna o meu termo em torpe recreio.

De príncipe, fui a pária no Parnaso,
mas não cedi minha lira ao desazo
que ora glorificas em teus cultores.

O que ruminam, parvoíces sem fim,
é já a nênia do teu último festim,
quando esgotares a borra do decoro.

Seremos, tu e eu, parceiros no ocaso,
e as nossas cinzas jazerão em vaso
que a patuleia cobrirá de rancores.

O silêncio que se impõe sobre mim
será o teu epitáfio, nódoa no marfim.
Seja também a chave a cerrar o ouro.

***

Auta
Os lírios murchos
no jarro
não feneceram ao acaso.
Tenho-os para lembrar-me
que, como eles,
sou carne.

***

Alberto
Nasci póstumo e vivi à revelia
em tantos que me não foram.

Cingi-me de rosas,
e eram apenas palavras
sobejadas do livro inóspito.

Com elas fundei a pátria que deuses negaram-me.

***

Jorge na rede

A língua mixa do sertão
esmerila a consoante rascante
conforma-a ao veludo de vogais
incultas
como as do vento em ondas
sobre palmas e canas

míngua a flor
em fulô
em flô

***

João
Por gravame ao fácil
lavrar na pedra a flor
que conta, infensa
à lira e seu langor.

Flor é a que se faz
sem pretexto de cor
nem o fútil disfarce
de poesia ou de olor.

É despetalá-la
de alma e de nome;
sépala a sépala,
podar o raso cânone

que é sua mortalha
em verbo sem nume,
confinado no talhe
vegetal. Flor é gume

mineral que desbaste
no grânulo o ofício
de crescer em haste
de medula, sem osso.

Flor é um esboço
que dorme sem galas
na palavra fóssil
anterior à fala.

***

Marginália

Drumundanismo

E-vém o moço comum no seu rocim
a alma sem jaez
pocotó pocotó pocotó

em paz com Deus e os semelhantes
de bem com as fêmeas
e o coletor de impostos
ele vem quase guapo na sua pacatez
pocotó pocotó pocotó

eis que uma pedra aflora
bem no meio do caminho
pronto! tropeça o rocim
caem os dois

o bicho
com as pernas quebradas
foi piedosamente sacrificado pela guarda municipal
o moço
de mui envergonhado com o tombo
virou poeta, tadinho!
(e dos mais complicados)

***

Leminski
Não é mapa ou porta
repto ou resposta
carta ou bula

não guia nem desguia
ninguém

antes a rasa tábula
onde escrever o nome
do mundo

***

Evangelho

O lodo da poesia
esfregue-o nos olhos
obtusos

***

Hai-chá

Cogumelo não é flor
mas ao rebentar no esterco
é a própria vaca em flor

***

Feira

Na Feira da Torre não se diz
flor como se fosse
pólen néctar olor

mas
como o peco é fruto
o espantalho com a flor na boca
é flor

***

Paideuma

Os de sílabas sacrílegas
cada som um dente
na jugular

Os de flores onivoníricas
que se perdem na miragem
de forçar a festa
na vertigem de ferrar a fera
na voragem
dos fogos fátuos

Os de palavras tristes
em riste

Os que sonham na mulher que amo
súcubo a ungir o branco
que nos escreve sem pressa
retintos de porra
e outras delícias

***

Glenn Gould no sofá

Aos líricos e aos mundanos,
o que não tenho mas ouso:
lego aquele (talvez) piano,
seu alfabeto de esboços,
sua clave de enganos,
a flébil flauta de osso.
de voo cego, sem pouso;
as notas são mais arcanos
de um baralho poderoso;
a quem, sobre-humano,
ouvisse-lhes o desacorço,
elas desvelariam o piano
e sua música sem gozo:
o som do silêncio insano,
um eco no fundo do poço.

***

Dândi

Uísque
poesia
e camisinha
para suportar o peso deste tempo
sacana
que acolhe o meu exílio
sem nem uma careta
de compaixão

***

Flora

Existe, sim, uma palavra
que o deus não diria

flor de sal
mel de signo
onde a vida desvela sua cifra

encontra-a e terás
o que o deus não ousaria

***






















domingo, 22 de janeiro de 2017

Luís Carlos Guimarães - O Aprendiz e A Canção


Primeiro livro de poemas de Luiz Carlos Guimarães (seu primeiro nome, Luís, fora impresso de maneira errônea), fazendo parte da Coleção Jorge Fernandes, em 1961, contém na folha de rosto o anuncio do prefácio feito por Luís da Câmara Cascudo, importante folclorista brasileiro, mas que na verdade é uma apresentação à coleção de livros.

Dividido em seções (AS SOLIDÕES, 3 CAMINHOS DE MAR, 9 POEMAS DESIGUAIS, O TECELÃO DE SOMBRAS e 5 CANÇÕES), o livro "reúne várias fases de sua poesia", refletindo "a admirável expressão poética do autor diante do mundo, onde a infância emerge sempre em tarde de setembro abertas como uma janela sobre o tempo", como é anunciado na orelha.

Alguns poemas do livro:

***

I

Com os ventos que ordenam tempestades,
agitam cabeleiras de afogados
e destroçam jovens primaveras,
viaja tua lembrança incógnita
entre o ensanguentado crepúsculo e a noite,
mas não posso desvendar-te o rosto
tecido de nuvens.

Ah se revelasses o que a tua face cobre
e o olhar esconde!
— velhas palavras se iluminariam
e o milagre seria tão inesperado
como se fosse a tarde
a chover pássaros sobre o mar.

Que infinitas distâncias andarei
para chegar a ti?
No sono desperto para o sonho

e no coração azul da tarde
escrevo a palavra
solidão.

                                                                                        C. Novos, 954

***

III

Vejo-te nessa praia de sonho
selvagem e primitiva.
A tua carne cresce da terra como uma rosa.
                           
O mar põe sonolências azuis em teus olhos.

Os teus molhados cabelos são trevas repousada.

Não importa sabê-la emoldurada pela tarde
pelo mar sem navios
e pelo céu sem nuvens.

Selvagem e primitiva
assim te quero e te amo,
 rosa demente de silêncio e sol. 

Tardes mares e céus
(velho hábito do tempo e da criação)
não te emolduram para o amor,
somente a solidão te completa.

Ficam, contudo, as estrelas e os pássaros
em sua longínqua espreita.

***
DO RIO NO OLHAR

Atrás do meu olhar
se escondem rios
alimentados nos olhos
que veem o mundo
tão escasso e pobre
qual uma ostra
na escuridão de sua concha.

Ao corpo que me guarda
empresto uma permanência
que o tempo me concede
(o inconcluso tempo
que abater-me-á
em dia que não tarda)
para servir aos rios
que em mim habitam.

Por enquanto que estação
logra deter-lhes o curso?

***

ELEGIA

As pesadas barcas do sono
se evadiram no teu ser.
Indiferente aguardas o sítio
que te escolheram para morada.
As palavras que eu tivesse
para cobrir o teu corpo
não bastariam para dizer da tua ausência
e do meu exílio.
Como duas ilhas na noite
duas estrelas fulguram
(são teus olhos que voaram
da carne que vestia tua alma).
Saber-te irresgatável à vida
firme na tua humana morte
— quando em verdade foste pássaro —
é medir a extensão do meu exílio.
Para esta hora
não basta a sepultura
onde se inscreva
em cal ou bronze
tua morte prematura
num epitáfio de auroras.

***

DA VÃ ARGILA

A vã argila que me cinge
e se alimenta em chama oculta,
ousa ferir o tempo em sua face clara
e prescinde do sonho para dar-me
o sonho ao alcance do olhar
que desvela um bosque de cristal,
onde um cinamomo azul
reverdece na tua alma
e te faz pássaro, pássaro
mensageiro de tempestades,
anunciador de luares cegos,
incendiário de primaveras,
afogador de ilhas e musa
da áspera vida — minha maldição.

***

DA TUA MORTE

Ficou a lembrança de tua morte
árvore plantada na minha alma

Janeiro chega ébrio de azul. Na calma
deste parque penso em ti. Sem norte
prossegue minha vida em busca das naus
que já partiram. Rude mágoa aflora
nos meus olhos. Clamo pela hora
de fazer-me rio e partir pelos vaus
com a roupagem das águas, despojado
da tristeza que me pesava qual um manto
de cinzas. Penso em ti e o esperado
pranto junta-se a canção que canto,
ao rio que serei. A morte, no entanto,
é a fonte, o porto, o bem mais desejado.

***

A ROSA

A rosa está pousada na mesa
fria, intacta, definida.
Rosa, talvez palavra essencial
na lembrança de outros dias.
Rosa imemorial, rosa de espanto,
esquiva ao olhar que a consome,
à mão que lhe fere a carne,
à boca que lhe chama rosa.
Não fosse o meu olhar
serias menos rubra,
sem este sabor de estrela
assassinada.
Rosa: ilha, incêndio, canção
na superfície da mesa.

***

DA AUSENTE

Espero encontrar-te agora
quando o crepúsculo incendeia a tarde
e fugitivos pássaros riscam de luz o horizonte.

Penso que te ocultas detrás de alguma onda
ou te escondes entre as duras penedias
que avançam para o mar.

É preciso que entendas esta linguagem de silêncio
com que envolvo o teu amado corpo de anêmona.

É preciso que vejas através do meu olhar,
no espelho do meu pranto,
quanta música tenho para ti no coração.

Mas eis que a noite chega, não te vejo mais.
Cessa a música que eu tinha para ti,
porque só podendo ver-te, movo-me ao canto.

Embora fiques sozinha no centro da noite,
acesa e distante como uma estrela,
iluminada com toda a luz do extinto crepúsculo.

***

POEMA EM DEZEMBRO

                                                                                        Para Oziris e Pedro

Oh tormento no princípio de Dezembro
há longo tempo eu conheço a ti em sonho!

Infância, paisagem antiga.

O toque festivo dos sinos em véspera de Natal
quando movimentavam-se no céu
nuvens de uma transparência suja

O pátio de infância
hoje coberto de edifícios.

Eu que não tive o mar
somente chuva caindo pesada nos telhados
molhando carne e coração.

As enchentes de Abril
parando o canto dos pássaros
e o rio correndo lento
para uma fonte maior que o princípio.
O domingo com sua alegria inútil,
o coreto derramando músicas alegres
e o meu primeiro grito de criança na tarde
acordando luzes no coração.

Hoje rio amargamente do que restou
— remoto silêncio de concha perdida no mar.
                                                                                        950

***

O TECELÃO DE SOMBRAS

Um tecelão de sombras
turvou meus olhos, oh vida.
Dirão que agonizo
em mansa penumbra
porque meu rosto não denuncia
uma aurora que se afirma
no meu ser.

Há desterro
na minha face lívida
e flui das mãos
o tédio de existir.
Meu coração no corpo
é como o fruto sob a casca.
Quem descobre
na epiderme a costura?
Quem anima esta engrenagem
que me faz homem?
Este pasto de palavras
que me alimenta,
aumenta as dimensões do ser
ou me arremessa
á argila primitiva?

O poema é a roupagem
onde me ausento.


            Janeiro, 957

*** 

GALO

A plumagem veste o canto.
não fosse a noite
trabalhando o amanhecer
sobre os telhados
da casa da fazenda,
nos currais onde os bois
escondem sua humildade
no olhar fechado,
no sono de orvalho
das espigas do milharal,
no algodão, na vazante,
no açude e além,
não cantarias o canto
cheio, rio que transborda
suas margens,
não cantarias o canto
áspero, cacto.
Não fosse a noite
sequer existirias,
galo, relógio da aurora.

                                               Julho, 957

***

SETEMBRO

Setembro joga flores pela janela.
A doçura da tarde
é um sorrir de anjo
onde tuas mãos costuram
uma rosa invisível,
uma rosa feita de ar.
Em contraste
à vertigem de azul,
oh, tua cabeleira de trevas.
Eu te chamo esperança
e grito geramos no teu caminho.
Na curva do céu voa teu riso
— suave deslizar da morte.

***

NOITE

Espalho na areia do tempo,
o sal da palavra,
a cala da melancolia,
e decido teus enredos,
liberto teus rios, noite.

O pasto de mistério
multiplicas sobre os homens
e as cidades.

Tropeças na minha carne,
costuras nos meus olhos tuas sombras
e me perdes por fazer-me surdo
aos chamados da aurora
que salta de tuas janelas
e ceifa as brancas espigas da lua.

***

POEMA DE PASTOR E MARINHEIRO

                                                           Para Otoniel Menezes

Entre ser e não ser uma lenda
o abismo de ficar meus pés sobre este chão
e a promessa desta madura e distante morte cegando-me horizontes,
aprisionando-me na paisagem rural do vale e da montanha,
enquanto mastigo melancolias no convívio dos pacientes bois e das mansas ovelhas.
Entre ser e não ser uma lenda
as naus apodrecem sua carne sobre o dorso frio das águas.
O meu partir deste porto é uma agonia de pássaros no crepúsculo
e dói ver a demência das âncoras submersas
visitadas por algas e peixes cegos.
A noite, morada de astros, enlouquece estes navios de luar e treva
com seus panos enrolados nos mastros.
As velas fechadas não rasgam caminhos nas águas
para descobrir ilhas, tempestades e naufrágios.

Entre ser e não ser uma lenda
espero o amanhecer — a partida das naus.

*** 

POEMA SOTURNO

Convém às pessoas soturnas
usar gravatas noturnas.
Trajar roupas escuras
(nunca em claro domingo
amarela ensolarado ).

Na lapela, ao lado esquerdo,
uma papoula sombria
e sapatos negros afeitos
às quedas e descaminhos,
à noite que pare o dia.
Mudar o verde da esperança
pelo roxo das mortalhas.
Cultivar flores malditas,
reinventar desesperos.


Refletir na pedra do espelho
a alma pobre de mangue.

Tingir as mãos de vermelho
que é a cor da cor do sangue.


Os olhos sempre inclinados
escavem o duro chão,
— os sete palmos de terra —
herança de Deus ao homem
desde o tempo da criação.

                                                                       Nov., 959

***

II

A música abrigada
na árvore
como chuva na terra

Chuva transparente
na terra,
música na árvore,
não pura,
viva.

Realejo
na boca de um menino
— o aprendiz e a canção.


                                   Natal, 951