[ capa: Marcelo Mariz ] |
Adriano de Sousa nasceu em Alexandria-RN em 5 de Março de 1962. Graduado em Jornalismo pela UFRN, publicou quatro livros de poesia:"Flô" (1998), "O Alvissareiro" (2001), "Saartão" (2004) e "Poesia" (2008). Participou do famoso Laboratório de criatividade da UFRN, na década de 1980, além de ter sido um expoente da geração mimeógrafo no RN, tendo publicado, em mimeógrafo, os livros: "overdose" e " Usura colonial", este último em parceria cm o poeta Antonio Ronaldo.
Para começar a falar sobre o trajeto poético percorrido em "Flô", é necessário ter em mente a assertiva de Claudio Willer, poeta e ensaísta, que diz: "Poesia é o lugar onde a linguagem se reinventa". E é a chegada nesse lugar, que a caminhada literária de Adriano representa. Mas é uma chegada que necessita de caminhada constante, pois não se alcança nunca; e o poeta bem o sabe, pois deixa claro, em sua poesia, sinais de não-conformismo. Atreladas à definição de Willer, é ousável explicitar as reverberações do poema "Antíode" de João Cabral de Melo Neto. O diálogo é bem demarcado nos poemas "João" e "Hai-chá", e mais sutilmente em outros, marcando sua autoafirmação através da transmutação dos significados. O que seria "Flô", senão a versão de Adriano da "flor" cabralina?
Fato bem explicitado nas palavras de Thiago Gonzaga, pesquisador da produção literária do RN, sobre o poeta: "Adriano de Sousa possui um texto lírico que alcança seu desígnio como edificação estética, sua linguagem é um instrumento de comunicação praticamente intransferível, ou seja, uma linguagem muito subjetiva, objeto exclusivo do texto em que foi produzida, subordinada às condições de enunciação de cada palavra, tanto na localização quanto nos diversos significados semânticos que sugere."
Em entrevista a Marize Castro, no livro "Além do Nome", Adriano fala sobre o seu livro de 1998: "A ideia era fazer uma imensa brincadeira com a ideia de fazer poesia. E por ideia de fazer poesia, se compreendem autores, cacoetes, estilos, modelos, comportamentos associados ao fazer poético. Então, há desde poemas mais elaborados até brincadeiras que refletem costuras, ideias associadas ao fazer poético num determinado meio, numa determinada época em que eu me movia. No fundo, é um ensaio com ideias soltas, sem nenhuma elaboração analítica sobre poesia ou sobre autores."
Em entrevista a Marize Castro, no livro "Além do Nome", Adriano fala sobre o seu livro de 1998: "A ideia era fazer uma imensa brincadeira com a ideia de fazer poesia. E por ideia de fazer poesia, se compreendem autores, cacoetes, estilos, modelos, comportamentos associados ao fazer poético. Então, há desde poemas mais elaborados até brincadeiras que refletem costuras, ideias associadas ao fazer poético num determinado meio, numa determinada época em que eu me movia. No fundo, é um ensaio com ideias soltas, sem nenhuma elaboração analítica sobre poesia ou sobre autores."
Com certeza é mais que 'desconfiável' essa "não elaboração analítica", não à toa o livro, na primeira parte, é marcado por uma investigação do alicerce sobre o qual o poeta se instala. Experimenta, pois sabe que não há novidades e, com isso, empreende uma revisitação ao cânone, chegando, em alguns momentos, a questioná-lo. O poeta não se vale de meras imitações de estilos, de Gregorio de Matos até nomes consagrados da chamada "geração marginal", passando por Auta de Souza e Jorge Fernandes, expoentes da poesia produzida no RN, toma lições preciosas de seus 'mestres', para, logo em seguida, subvertê-los. Ou até mesmo no primeiro instante, de maneira escrachada, por que chamar Bocage de "Bocuge"? 'Desconversa', em certa medida,, por saber que não precisa se explicar ou pedir desculpas, o certo é que Adriano, seguramente, brinca com suas referências e releituras, "fundando a pátria que os deus o negaram", pois sabe que sua voz não sumirá dentro delas.
Poemas de "FLÔ"
***
Gregório na ilha
Em esta ilha vicejam patranhas
e poltrões, patrões e putanas,
em coito c'oa Coroa e co'a Cruz
a melhor danar a tribo de truões.
Passam, pobres, nobres e monges,
nos cobres o caráter e as vergonhas,
com tal desfaçatez, e viço, e tanto,
que a mim, vilão mor, eis-me santo.
Se deveras a fé remove montanhas,
a bolsa move das gentes monta nã
menor. Demove ódios, cabaços
e leis; aperta ou desata o baraço
que se nos adorna a garganta;
à glória da malta toda barganha
é lídima. Insulado em tal jardim,
concedo-lhes o melhor de mim
na flor de latrina cuja grã façanha
é feder melhor que os meganhas.
***
Bocuge
Não é mesmo flor
que se cheire, o cu.
Mas nem o fedor
não repele o cúpido
e contumaz beija-flor
quando emproa o curso
à busca do palor
apaziguado a cuspe.
Língua, dedos, verga
varam a fauce rugosa
e colhem, às cegas,
a flor sulfurosa
no buquê de merda.
No entanto, rosa.
***
Olavo pira e expira
Última flor do Lácio, inculta e bela,
foi tal o estilo e tanta a gramática,
e eis que definhas em flor asmática
que os poetastros ostentam na lapela.
Ao cabo da jornada, coube-me um cetro
do vetusto mármore em que elevei
o teu estandarte, com ritmos e metros
garimpados no mais clássico veio.
Iguarias que servi em refinadas baixelas
apodrecem ao léu, por demasiado áticas,
no convescote onde a choldra asnática
desfalece de fome, por banguela.
Antes que rebaixem à campa o féretro,
devolvendo-me ao léxico obscuro e feio,
apraz-me insultar a procissão de espectros,
que torna o meu termo em torpe recreio.
De príncipe, fui a pária no Parnaso,
mas não cedi minha lira ao desazo
que ora glorificas em teus cultores.
O que ruminam, parvoíces sem fim,
é já a nênia do teu último festim,
quando esgotares a borra do decoro.
Seremos, tu e eu, parceiros no ocaso,
e as nossas cinzas jazerão em vaso
que a patuleia cobrirá de rancores.
O silêncio que se impõe sobre mim
será o teu epitáfio, nódoa no marfim.
Seja também a chave a cerrar o ouro.
***
Auta
Os lírios murchos
no jarro
não feneceram ao acaso.
Tenho-os para lembrar-me
que, como eles,
sou carne.
***
Alberto
Nasci póstumo e vivi à revelia
em tantos que me não foram.
Cingi-me de rosas,
e eram apenas palavras
sobejadas do livro inóspito.
Com elas fundei a pátria que deuses negaram-me.
***
Jorge na rede
A língua mixa do sertão
esmerila a consoante rascante
conforma-a ao veludo de vogais
incultas
como as do vento em ondas
sobre palmas e canas
míngua a flor
em fulô
em flô
***
João
Por gravame ao fácil
lavrar na pedra a flor
que conta, infensa
à lira e seu langor.
Flor é a que se faz
sem pretexto de cor
nem o fútil disfarce
de poesia ou de olor.
É despetalá-la
de alma e de nome;
sépala a sépala,
podar o raso cânone
que é sua mortalha
em verbo sem nume,
confinado no talhe
vegetal. Flor é gume
mineral que desbaste
no grânulo o ofício
de crescer em haste
de medula, sem osso.
Flor é um esboço
que dorme sem galas
na palavra fóssil
anterior à fala.
***
Marginália
Drumundanismo
E-vém o moço comum no seu rocim
a alma sem jaez
pocotó pocotó pocotó
em paz com Deus e os semelhantes
de bem com as fêmeas
e o coletor de impostos
ele vem quase guapo na sua pacatez
pocotó pocotó pocotó
eis que uma pedra aflora
bem no meio do caminho
pronto! tropeça o rocim
caem os dois
o bicho
com as pernas quebradas
foi piedosamente sacrificado pela guarda municipal
o moço
de mui envergonhado com o tombo
virou poeta, tadinho!
(e dos mais complicados)
***
Leminski
Não é mapa ou porta
repto ou resposta
carta ou bula
não guia nem desguia
ninguém
antes a rasa tábula
onde escrever o nome
do mundo
***
Evangelho
O lodo da poesia
esfregue-o nos olhos
obtusos
***
Hai-chá
Cogumelo não é flor
mas ao rebentar no esterco
é a própria vaca em flor
***
Feira
Na Feira da Torre não se diz
flor como se fosse
pólen néctar olor
mas
como o peco é fruto
o espantalho com a flor na boca
é flor
***
Paideuma
Os de sílabas sacrílegas
cada som um dente
na jugular
Os de flores onivoníricas
que se perdem na miragem
de forçar a festa
na vertigem de ferrar a fera
na voragem
dos fogos fátuos
Os de palavras tristes
em riste
Os que sonham na mulher que amo
súcubo a ungir o branco
que nos escreve sem pressa
retintos de porra
e outras delícias
***
Glenn Gould no sofá
Aos líricos e aos mundanos,
o que não tenho mas ouso:
lego aquele (talvez) piano,
seu alfabeto de esboços,
sua clave de enganos,
a flébil flauta de osso.
de voo cego, sem pouso;
as notas são mais arcanos
de um baralho poderoso;
a quem, sobre-humano,
ouvisse-lhes o desacorço,
elas desvelariam o piano
e sua música sem gozo:
o som do silêncio insano,
um eco no fundo do poço.
***
Dândi
Uísque
poesia
e camisinha
para suportar o peso deste tempo
sacana
que acolhe o meu exílio
sem nem uma careta
de compaixão
***
Flora
Existe, sim, uma palavra
que o deus não diria
flor de sal
mel de signo
onde a vida desvela sua cifra
encontra-a e terás
o que o deus não ousaria
***
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