sábado, 13 de abril de 2024

Olga e o barulho (ou como afogar relógios)

(A primeira versão desse ensaio/resenha, escrito por um dos nossos editores, Victor H. Azevedo, foi publicada originalmente no finado blog Substantivo Plural. Com a descontinuidade do blog, o texto tornou-se inacessível para o público. Por conta disso, resolvemos republicá-lo aqui, com alguns breves ajustes.)




Olga entrega-se, confidencia logo na largada: tem medo do tempo, da dor do tempo; diz querer viver uma “eterna madrugada, ainda que dadas as impossibilidades”; que ama demais (“Eu não sei [...] qual o sentido do amor. Sei que a cada 3 meses disso eu levo pelo menos uns 6 para me livrar dos efeitos colaterais”); que gosta de beijar gente mais alta que ela; que gosta do fim de tarde, enfim. Ela mostra-se logo “de coração descalço”, revelando que escreve with bare hands.

Sobre seu livro (Um minuto de barulho, Editora Patuá, 2020), ela o define, já na apresentação, como sendo “mais desabafo que poema”, como uma investigação das entranhas, o que pode parecer para alguns a definição de um caderno de poemas sentimentais, adolescentes, que falem sobre as obviedades de sempre: o amor, a dor, a solidão; mas este livro é, na realidade, um exemplo da boa poesia confessional feita pelas redondezas de cá, onde surge um poeta novo em cada poro da cidade . 

O amor — essa trivialidade inerente ao humano — é sim tratado aqui, e talvez seja a temática mais presente e barulhenta, embora escrita de um jeito exquisite — para se usar um termo empregado pela poeta — sem ser tão previsível, já que Olga não fala do amor, dos seus amores, como uma paisagem sem carnaduras, redundância abrangente de ós e ais ou metáforas engraçadinhas e rasteiras. Sua escrita é seu confessionário, dedicada ou voltada a pessoas com nome, como Clara, em “Das coisas extraordinárias daqui”,  gabi (assim mesmo, em minúsculas), em “Gabi”, e Maria, em “Mañana”; além dos inúmeros vocês anônimos, seja o você que é o eu, a falar consigo em espelho confidente, como em “Zoom de perspectiva” (um dos meus poemas favoritos do livro); seja o você que é o outro/ a outra, como em “Todos”, “Barra Vista vê São Jorge na lua”, “O amor acontece à noite (ou ‘xx night time’), “Pestes”, e todo o restante da segunda seção do livro. Essa singularidade, de endereçar poemas às pessoas, de sugerir vivências, torna tudo mais palpável, mais verídico, ainda que ela secretamente nos conte ficções, mentiras. Acho que Olga realiza com sucesso o que escreve na apresentação: “Alguém me disse que poesia é escrever uma coisa óbvia de forma bonita. Eu penso que é escrever uma coisa bonita de uma forma não tão óbvia [...]”.


I: EU-COISA

          Estou numa estação de trem, esperando. O assento, o pavimento — concreto. Brisa marejada dos pinheiros. Longe um anum branco cantareja como se augurasse o fim da tarde. 

O que quero é simultaneamente ir e ficar — é assim que leio a primeira parte deste livro, que se chama Eu-Coisa. Olga começa à noite, na rua. Caminha. Há o barulho, a palavra barulho, que “é importante e é necessário se acostumar a dormir com ela de vez em quando”. Há o barulho das mulheres “que caminham à velocidade de uma bicicleta comum”, dos homens que “arrastam os pés”. O barulho do ronronar das palavras de seu primeiro bicho de estimação: “um gato três vezes maior que eu”, da mãe desaprovando a filha num balão de pensamento, enquanto esta, “ignorando tanto o bom senso quanto a prevenção de assaltos ensinada pela minha mãe”, salva uma frase de bar: “Que você venha pelo que procura, e que fique pelo que descobriu”. O que acontece aqui são sutilezas cotidianas que a poeta alardeia sob o corpo do texto. Pois pense: que seria dessa cena para você, leitor, no seu dia a dia? Há barulho nela? Ou sua cabeça anda atribuladíssima consigo, ao ponto dessa cena ser como música de fundo de olhos? Olga arranca de si e do mundo, amplifica o colhido de modo aparente, faz barulho com as palavras.

Leio um verso: “Não sei falar de mundo sem sentir cheiro de mar”. Penso na palavra marulho: nesse ajuntamento de mar e barulho num só vocábulo. Sinto o cheiro dessa palavra marulho quando leio alguns dos poemas. Alguns versos imagino ecoando numa casa de praia vazia, anterior ao verão: “Eu ainda sonho com os amores aqui/ mesmo que cada um deles surja apenas/ para engolir meus pássaros/ e vomitar outras feras” ou “Quero morrer com o cabelo azul marinho”. 

Ainda que eu me sinta nessa estação de trem hipotética enquanto leio essa parte, sinto o mar espionando Olga. E parece que ela sabe que o mar a espreita, que o mar é esse selvagem animal de estimação de que ela toma conta, e que toma conta dela: “Prender a respiração embaixo d’água e deixar/ o corpo ser levado pela corrente não levará/ a lugar algum”. Esse trem que aguardo é isso — esperar que a corrente me leve daqui, mas ela não leva; é o meio entre querer ficar e ir embora, é esse “nenhum chão do agora” de que Olga fala.

A respiração talvez seja muito mais presente aqui do que em qualquer outra seção. Reflexo do mar, da apneia, da absorção: É o “Respirar na palavra incólume”, “respirar você porque é/ necessário” — respirar, por que é vivo o que se faz.


II: VOCÊ-CAUSO

        Adentro neste quarto de apartamento que é a segunda seção: Você-Causo. O ar é quente, mas uma luz bonita atravessa as cortinas e lumia o lugar. Uma cama de casal ocupa quase metade desse espaço. Lençóis, calcinhas, cuecas, roupas jogadas no chão. Há rostos emoldurados pelas paredes — fotografias. Aqui um romance findo, ali a figura do mestre deserdado, acolá uma turma de amantes (o que faz a pele de estádio, o que tem nas costas a América Latina redesenhada). Olga se desenovela aqui como undateable, feito a protagonista do filme Frances Ha, por parecer não conseguir ancorar-se aos amores (ou seriam eles que não conseguem se ancoram a ela?). Permeia-se o querer dos corpos, as peles coladas — as coxas, as cinturas, os dedos, os lábios, os pássaros. Contudo, esse ter-se com o outro aqui é efêmero. A união é temporária, a despedida é comprida — mas é nesse temporário que Eros faz a festa na “pele-palco”. Lembro de um verso, da seção passada: “Tudo que faço é estalo e monotonia”. Na entrada dessa segunda parte, tem-se: “Tudo sempre foi uma performance para preencher seus dias de tédio”. Há sempre um aborrecimento que se prolonga, na pintura que Olga realiza em alguns desses vocês. Essa mesmice se rebenta com os estalos, os desejos em carne viva, as pequenas mortes. Depois, tudo volta, parte: “fazer do gozo, lágrima”, ela diz.

Não digo que há uma ardência desses corpos que se tocam nesses poemas, mas sim um afogamento. Ainda que haja todo o afago e flama, é na liquidez que esses encontros terminam. É a recusa ao toque da delícia do outro (em “Todos”), é a rememoração dos dias de outrora de um comparsa (em “Barra Vista vê São Jorge na lua”), é “virar a página” ainda que se declare o amor (em “O amor acontece à noite (ou ‘xx night time’)”), a declaração dos quereres (de “Quando você me amar,”), e por aí vai.

E por falar em afogamento, o mar e seus signos orlam, de quando em quando, alguns momentos aqui também: é o “afogamento beirando a garganta” e “me afogo em ninho de disfarces (em “Todos”), é a “casa em frente ao mar”, o marulho, a maresia, as sereias, “seu joca, o pescador” e um tanto mais de figuras (em “Barra Vista vê São Jorge na lua” [talvez o poema mais marinho, mais praieiro do livro]). Esse animal chamado mar é seu companion, seu amuleto. Antes, Olga emprega um conceito interessante, uma descoberta: “[...] talvez a maior descoberta da minha vida foi entender/ ‘eu’ não como um conceito,/ mas como um sentimento/ [...] eu sou feita do meu perfume preferido de rosas/ e de como eu me sinto quando, depois do banho,/ borrifo ele atrás das orelhas”. Além do perfume de rosas, creio que Olga (o sentimento Olga) é o mar. Um mar diferente do de Vicente de Carvalho ou do de Sophia de Mello Breyner Andresen — é um mar citadino, mais afogamento que onda. Mais casa de praia do que farol. Mais anzol do que âncora. 


III: NÓS-CAUSA

        Vejo um sarau no meio da praça. Gente sentada num círculo — alguém trouxe um violão, outro trouxe os poemas de Brecht. Não há microfone, a poesia é dita no grito. É assim que leio essa porção final do livro, intitulada Nós-Causa.

Aqui o barulho é bem mais político. Na realidade, o livro inteiro é permeado por momentos políticos, mas de modo latente, cerrados em incidentes,  como o caminhar divergente das mulheres, se comparado ao “arrastar de pés” dos homens (em “Tudo”), ou o jogo de fato e opinião (em “Zoom de perspectiva”). Aqui, o corpo político se torna mais evidente. Há a “luta cotidiana contra o desespero”, o patriarcado machista titânico (“os homens atrás de mim na calçada: assombrações”, “Descobri, no meu parceiro, um dono”, “Aprendi que a louça era minha obrigação, que a casa era meu lugar.”). Nesse sentido, “Carne viva” é o poema de didática mais interessante dessa parte, e “Sobre [posição]”, ainda que verdadeiro, é o mais comezinho, o mais fraco.

Há palavras de ordem, como no poema "Propósito", onde ouve-se a voz de Olga adquirir um tom meio geração marginal (mais Chacal ou Cacaso do que Ana C.),  quando diz-se que “A obrigação do poema é mostrar/ a saída de uma sala/ onde ninguém jamais/ conseguiu entrar: de porta pra poeta a diferença é de uma letra”. Nesse poema, incomoda essa obrigação do poema, dissonora, imposta. O poema não tem a obrigação de nada nos dias de hoje; chegamos, depois de tantas escolas literárias, ao caráter do poema como inutensílio, como bem empregou Paulo Leminsky certa feita. O poema, seja ele bom ou ruim, não é obrigado a nada. O poema é multifuncional. Talvez, se a obrigação fosse trocada pela função, eu tivesse lido esse poema em específico de um jeito menos autoritário, menos demandante, mas aqui creio que discorro demais sobre o uso de uma única palavra num poema curto, de cinco versos. Decerto, esse poema não parece se encaixar muito confortavelmente no conjunto total dessa seção final do livro.

O que corre subcutâneo aos versos do final do livro é a política do tempo. Política aqui no sentido de “arte ou ciência de governar”, de ser governado pelo tempo. E aqui regresso à apresentação, à confissão do “medo do tempo, da dor do tempo”. Isso fica claro no poema “Um idoso sozinho em um restaurante”: “O idoso cansado, que/ não sabe se está perdendo ou/ ganhando dias[...]”. Há o peso desse medo que “sentimos no pulso:/ O relógio”, que irreprimivelmente nos faz crescer e/ou envelhecer. Crescer mulher, depois mulheres (“Carne viva”); envelhecer ao ponto de esquecer o número do próprio calçado (“Um idoso sozinho em um restaurante”). A verdade é que o tempo surge aqui e ali nesse livro como um assombro que transpassa o corpo: em “Quando você me amar,” na segunda parte, ela pede: “faça meus relógios pararem e o tempo/ parecer uma mera invenção/ da cabeça de quem nunca se perdeu no eterno do contato”; é o registro de horários em toda a primeira parte: esquecer como se respira, enquanto dança de mãos dadas, às quatro e meia da manhã; “ligar para todos os seus amigos às quatro da manhã”; ser cinco, seis, seis e meia da manhã; é a “madrugada em pânico”, e aqui a poeta parece querer deixar claro o que foi dito na apresentação: de que, ainda que dadas as impossibilidades, ela quer viver “uma eterna madrugada” — hora onde todos dormem, onde os despertos sentem a paz (ou o caos, ansiedade) de se estar só, silente, vendo a noite amanhecer.

Outra característica dessa seção parece ser a visão singela do mundo, com olhos de criança, algo que me lembra aquele poemeto do Oswald de Andrade: “Aprendi com meu filho de dez anos/ Que a poesia é a descoberta/ Das coisas que eu nunca vi”. Olga descreve objetos e acontecimentos que, ainda que melancólicos, trazem miúda iluminação à leitura. São as mariposas e borboletas no mostruário; é a arte sacra de observar o caminhar das formigas; é olhar a si própria e pensar em um inventário de coisas sortidas (travesseiro de penas, trilogia de filmes românticos, poemas tristes, a cidade de Natal); é Shake, o gato, no armário, assustado com os filhotes. Parece por vezes que Olga cata cenas de diferentes momentos da sua vida (infâncias, adolescência, fase de jovem adulta), sem distinguir épocas, sem impor divisórias — afinal, o tempo é amorfo —, e cria poemas que têm memórias embaralhadas com piolhos, roupas jogadas no chão, carne viva, formigas, jambo, suicídio, biquíni, e uma miríade outra de lembranças costuradas em colchas de retalhos.

Agora é tarde da noite. O sarau terminou. Algumas pessoas ficaram pelos arredores, fumando, bebendo vinho, conversando. A maioria dos que vieram para o evento foram para casa há muito tempo. Olga já não está aqui. O último texto não é dela, mas uma tradução sua de um texto que serve de posfácio, da poeta Melissa Broder. “Talvez o oceano estivesse torcendo por mim, afinal? Talvez nós estivéssemos do mesmo lado, compreendidos nas mesmas coisas, água principalmente, mistério também”, diz Melissa na voz de Olga, enquanto a imagino acarinhando o mar de madrugada.




domingo, 20 de dezembro de 2020

+ 2 poemas inéditos em livro de José Bezerra Gomes (e fotografias)

JBG em Lagoa Santa/MG


Victor H. Azevedo, um de nossos editores, durante suas andanças de pesquisador, dessa vez pelo blog de Moacy Cirne, encontrou alguns poemas de José Bezerra Gomes que não foram publicados em sua Antologia Poética e tampouco constam na pesquisa realizada anteriormente por ele em jornais disponíveis na hemeroteca da Biblioteca Nacional. Segundo aponta o próprio Cirne, um desses poemas ("SOUSOURITA") é fruto da pesquisa de Willian Pinheiro.

Tratamos de compilar os poemas que Moacy reuniu em seu blog aqui, pois tem sido um dos objetivos de nosso projeto reacender, na memória dos novos e dos antigos, a obra (por vezes perdida) de poetas consagrados do Rio Grande do Norte.

Também trazemos fotos do autor para que o leitor possa agora ler seus escritos e ter em mente um retrato dele, para além das pouquíssimas fotografias que povoavam a internet.

Somos imensamente gratos ao pessoal da Lemnisco, de Currais Novos, pelo auxílio e cessão das fotografias.
* * * 


SOUSOURITA
[Publicado originalmente por Berilo Wanderley,
na coluna Revista da Cidade, da Tribuna do Norte (Natal),
em 15 de junho de 1960]

Tende consideração
ela é uma criança
Ela quer perguntar pela irmã
deixem deixem deixem
É sousourita
dormindo acordada
sousourita
sousourita
sousourita
acordada
dormindo
por sousourita
por sousourita
por sousourita

[Pesquisa: Willian Pinheiro, de Currais Novos]
Nota de Moacy Cirne, no Balaio:
Sousourita é um nome de mulher, já explorado anteriormente por JBG.
Sua grafia com "s" minúsculo pode ser proposital, assim como pode ser um erro de datilografia e/ou revisão. De comum acordo com o pesquisador seridoense, resolvemos mantê-lo tal qual se deu a publicação na TN.

***

MARATONA

Um menino
corredor
corria
correndo
para a sombra
para a sombra
de um pássaro

***

FOTOGRAFIAS DO AUTOR 
(Cedidas pelo pessoal da Lemnisco; As legendas nas fotografias, quando escritas com [W.N] ao início, são de Willian Pinheiro)

[W.N] JBG escrevendo "A porta e o vento", em sua casa na rua Pajeús em Natal. 


[W.N] JBG, possivelmente em MG.

JBG (de pé, sem camisa, ao centro) junto da turma.

[W.N] JBG em Guarapari/ES.

[W.N] JBG no escritório.

JBG (à esquerda) em Lisboa.

À esquerda, o poeta Anchieta Fernandes. Ao centro, JBG. À direita, pessoa ainda não identificada. 

JBG e amigos.

Jovem JBG.

Jovem JBG fardado.

JBG (à direita), ao lado de (supomos) Dona Veneranda. Juntas, amigas e familiares.

JBG nadador.

JBG, já velhinho.

[W.N] JBG, o historiador (provavelmente em meados dos anos 1970, quando ele escreveu um livro sobre a história de Currais Novos).

JBG (de branco, ao centro) proseando.



JBG.





sábado, 9 de novembro de 2019

ACTA DIURNA, de Câmara Cascudo, sobre o livro de estréia de Antonio Pinto de Medeiros, Um Poeta A Tôa



Um dos nossos editores, Victor H. Azevedo, regressando a sua pesquisa sobre Antonio Pinto de Medeiros, acabou por encontrar essa pérola numa edição do Jornal «Diário de Natal»: Uma resenha escrita por Câmara Cascudo, sobre o livro "Um Poeta à Toa", de Antonio Pinto de Medeiros. Considerando isso um achado, resolvemos postar o texto aqui

***

Termino UM POETA À TOA, de Antonio Pinto de Medeiros e a impressão é de ter acompanhado um Poeta através de um mundo estranho, iluminado pelas luzes rápidas de pensamentos que não tomam forma audível e sensível aos órgãos normais de percepção humana. É como uma imensa cidade adormecida ou morta, com as casas luminosas e vazias, as ruas cheias de homens, de carros, de soldados, de mulheres, de crianças, parados, fixos, conservando a posição em que foram fulminados pelo cataclisma.

Nada falta de beleza e de perfeição verbal, as joias da precisão vocabular, a originalidade da visão, a clareza preciosa da forma, a força nova, elástica, magnética de uma vida intensa, poderosa, mas cheia de mistério, de recato, de expressões reticenciais que ardem como brasas.

Nada ilude mais que essa linguagem hermética, coleante, feiticeira mas intraduzível aos ouvidos fáceis de qualquer leitor. Lembra canções húngaras, lentas, langues, ondulantes no ar como um dorso de serpente baudelaireana, ensopadas de melodia que se filtra na memória mas guardando o segredo de sua intimidade. Aquela música decorre em linha paralela ao nosso entendimento, mas não a nossa emoção. A compreensão gramatical é um primitivismo para mais de cem escolas literárias.

A ilusão dura até que a primeira palavra iluminadora apareça. Se alguém quiser percorrer a cidade imóvel sem a curiosidade perquiridora, bastará a musicalidade das frases para o encanto auditivo e para a sugestão criadora do pensamento individual, dogma de meio século para hoje.

Se o leitor atender ao apelo para a vida interna do poema à vida interior e rebelada, convulsa e tempestuosa, então sentirá o milagre coletivo de uma cidade ressuscitada. O movimento encherá as ruas, o ritmo desdobra-se-á em cambiantes infinitos, a multidão retomará passo, gesto e cadência, e todos os rumores da vida organizada em colmeia humana alargarão as ruas e as praças na sonoridade festiva da existência diária. O vento voltará a sacudir os estandartes parados e a espalhar pelo ar perfumes de flor e sons de clarins despertos para a vida e para a luta.

Termino a leitura de UM POETA À TOA com a surpresa de uma entidade intelectual cheia de palpitante ansiedade, percutindo todos os problemas, batendo com a mão impaciente na face dos mármores e dos bronzes perguntando inquieto: — PERCHÉ NON PARLI?

Um poeta à toa não é um poeta sem rumo e sem direção. Toa é a corda que prende um barco a outro para levá-lo contra a corrente, vencendo vento e maré. Que toa arrasta o Poeta para as aventuras do mar alto? Nenhum deixará de cumprir a fatalidade etimológica do próprio título. Poeta, "pociein", fazer, realizar. Os poemas que li são esses primeiros golpes, cortando a onda violenta. Esse é um dos livros mais intensos, de vida mais forte, de densidade mais impressionante de sua geração e momento brasileiro. Sente-se o impulso irresistível sacudindo o Poeta como uma aura impetuosa de mediunidade, gravando um diálogo trágico de sombras e relâmpagos, num céu convulso de tempestade. Qualquer dedução pessoal é apenas uma simples referência. O essencial é aproximar-se e viver com o Poeta os segredos que a iniciação revelará no plano dos sonhos e dos apocalipses. Não julgueis... mas antes, como seguindo o conselho de Santo Agostinho, TILLE LEGE, toma e lê...


sábado, 2 de novembro de 2019

Franklin Capistrano — POEMAS daflor dapele


[Capa: Falves Silva]

"Poemas daflor dapele" é um livro de poemas visuais, de Franklin Capistrano, publicado em 1988. O livro é dividido em 4 partes, cada uma com uma cor de papel respectiva: azulgrafemas, verdegrafemas, vermelhografemas e amarelografemas. 

Franklin Capistrano nasceu em 1951, na cidade de Monteiro/PB. Com oito anos de idade veio morar na capital do Rio Grande do Norte. Foi presidente do Cine Clube Tirol. Em 1964, ganhou um prêmio de poesia no Atheneu. Em 1965, mostrou "um catatau que produziu a Nei Leandro de Castro, [que] depois do que ouviu, resolveu rasgar tudo", diz Rejane Cardoso, na orelha do livro. Em 1986, funda, com Falves Silva e Anchieta Fernandes, o jornal "A Margem". É também médico psiquiatra e vereador pelo PSB.

O prefaciador do livro, Farias de Castro, nos fala que com os poemas do livro "O poeta nos confesssa sua preocupação com o futuro da poesia e do poema, nesta terra de tantos e tantos poetas. Procura novas formas/fórmulas para dizer o que 'sinto=vejo'. Busca e rebusca a palavra na sua intimidade essencial: faz um trabalho de vanguarda."

O livro, diagramado pelo próprio autor e por Falves Silva, trabalha  muito com o espaçamento das letras e dos espaços vazios da página. O exemplar que tivemos acesso tem certo esmaecimento na cor de suas páginas, então, para preservar um pouco do casamento entre a cor das páginas e os poemas, preferimos fazer versões símiles dos poemas que selecionamos para compor esta coletânea.


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quinta-feira, 17 de outubro de 2019

7 poemas inéditos em livro de José Bezerra Gomes


[Recorte de fotografia de José Bezerra Gomes, encontrado em um jornal]

José Bezerra Gomes nasceu no dia 9 de março de 1911, no Sítio Brejuí, Currais Novos (RN). Formou-se na UFMG, em Ciências Jurídicas e Sociais. Publicou os livros: Os Brutos (1938), Porque não se casa, Doutor? (1944), A Porta e o Vento (1974), Antologia Poética (1975), além de ensaios sobre a história de Currais Novos, Ferreira Itajubá e Teatro de João Redondo. Faleceu no dia 25 de maio de 1982, em Natal (RN).

Dele, já publicamos aqui no Poesia Subterrânea, uma seleta de poemas do livro Antologia Poética, seu único livro de poemas. Contudo, um dos nossos editores, Victor H. Azevedo, aventurou-se em hemerotecas, pesquisando sobre a vida e a obra de José Bezerra Gomes por via de jornais e revistas, e acabou por descobrir 7 poemas inéditos, que não constam na Antologia Poética. Victor também descobriu inúmeros fatos sobre o poeta, que ele pretende reunir em uma plaquete, intitulada JBG, a a ser lançada, possivelmente ainda este ano.


***

Doralice, a multiplice...

A música não é porque não estão tocando...
O artista também não porque não estão pintando...
— É Doralice, a inúmera,
saindo das chamas do fogo,
cavalgando nas ondas do mar...
A noiva não é porque não estão bordando...
O recém-nascido também não porque não estão chorando...
— É Doralice, a multiplicada, vestida na minha sombra.



***



DA MINHA TERRA EU TAMBÉM CONTO...
(poema bissexto de José Bezerra Gomes)
                                   (Para Hélio Galvão)


Na minha terra tem vaqueiro derrubador,
cantador e cangaceiro,
chapéu-de-couro, gurinhém, papamarelo,
Jararaca, Fabião, Jesuino Brilhante...

            — Minha mãe chamava-se Antônia,
            — meu avô chama-se João,
            — meu pai chama-se Vicente,
            — eu me chamo Fabião...

Na minha terra tem algodão,
feijão verde, milho-assado,
crôa-de-frade, pau-de-espinho...

            — Os espinhos do sertão
            — trago todos na memória,
            — Mandacaru, xiquexiquei,
            — macambira, palmatória...

Na minha terra tem tutano-de-boi,
panelada, jerimum com leite...
Chouriço-de-porco, mel-de-abelha...

            — Xiquexique é pau-de-espinho,
            — imburana é pau-de-abeia,
            — rosário de besta é canga
            — paletó de nêgo é peia...

Na minha terra tem braco, tem mulato,
tem caboclo, negro-cativo,
moça donzela, senhora dona...

            — perna de nêgo é cambito,
            — peito de nêgo é estambo,
            — barriga de nêgo é pote,
            — roupa de nêgo é mulambo...

Na minha terra tem graviola,
melancia, maracujá,
imbú maduro, quixaba doce...

            — Dá milho, feijão,
            — tem fruta, tem cana,
            — melão e banana,
            — arroz, algodão...

Na minha terra tem queijo-fresco,
cuscuz-de-milho, carne-de-sol,
canjica quente, manteiga-da-terra...

            — Com vinte dias de chuva,
            — logo após a vaquejada,
            — chega a fartura do leite,
            — manteiga, queijo e coalhada!

Na minha terra tem cigano-do-Egito,
curandeiro, benzedor,
matador-de-onça, mestre professor...

            — Um bê com a bê-a-bá,
            — um bê com é bê-é-bé,
            — um bê com i bê-i-bi,
            — um bê com ó bê-ó-bó...

Na minha terra tem concriz, sangue-de-boi, ribaçã,
galo-de-campina, beija flor,
maracanã, papagaio-falador...

            — No sertão é belo ver,
            — a seriema cantar,
            — a onça roncar na serra,
            — a arara gritar no ar...

Na minha terra tem adivinhação,
história-de-Trancoso, desafio...
— Mandou dizer el-rei nosso senhor
que vossa excelência contasse outra...


***


Espelho das Cinco Faces



Minha avó
mãos caducas
cabelos brancos
cercada de netos
os filhos abençoando...

Minha infância
fitas de Tom Mix
medo das almas
bancos escolares
lições decoradas...

Minha terra
fogueiras acesas
milho assado
fogos do ar
Senhor São João...

Minha riqueza
notas de maço de cigarro
a meninice correndo nua
pátio em roda do Brejuí
meu cavalo de pau galopando

Minha primeira namorada
mãos frias faces coradas
coração batendo olhares furtados


***


Meninice


Minha primeira arma
branca
foi uma rucega...

Menino desadorado...

E meu maior
desejo
era ser cangaceiro...

Zé Moleque...
Jesuíno Brilhante...
Capitão Antonio Silvino...


***


Balada do homem podre ressuscitado


Estendo-me nos braços
Sou Ele... Sou Ele...

Deploro ressuscitado
o filho anjo desprotegido
morto insepulto pagão.

Choro ressuscitado
   filha esquelética
desnaturada
órfã de pai vivo
nos braços da mãe viúva...

    Covarde... Covarde...

Tenho sede
sede de sede
sede do próprio sangue...

Meu santo
São Sebastião...

Sou Ele... Sou Vós...

Bêbedo rindo chorando...

                                                Currais Novos, maio de 1950


***


Nem tudo
foi
sem eles


***

Meditação para evocação da cidade multiplicada


Quando meus olhos
encantados
Contemplarem
a cidade
multiplicada,
Apontai-me todos
A rua em que guardei minha infância.
A casa
singela
solidária
olhando para a Praça Cristo Rei.
Sede por mim,
quanto por ela mesma,
a cidade toda multiplicada.
Facultai-me o dia
amanhecendo
para a beleza
da luz do sol
vivificando o mais obscuro batente
da cidade multiplicada.
Deferi-me o silêncio da noite enluarada
revelando-me a imagem infinita
da sombra da torre da Igreja Matriz
de Nossa Senhora Sant'Ana
glorificando o patrimônio do tesouro
eclesiástico
da cidade multiplicada.
Sede por mim mesmo, uno,
E por ela mesma, única,
A cidade de Currais Novos.