quinta-feira, 17 de outubro de 2019

7 poemas inéditos em livro de José Bezerra Gomes


[Recorte de fotografia de José Bezerra Gomes, encontrado em um jornal]

José Bezerra Gomes nasceu no dia 9 de março de 1911, no Sítio Brejuí, Currais Novos (RN). Formou-se na UFMG, em Ciências Jurídicas e Sociais. Publicou os livros: Os Brutos (1938), Porque não se casa, Doutor? (1944), A Porta e o Vento (1974), Antologia Poética (1975), além de ensaios sobre a história de Currais Novos, Ferreira Itajubá e Teatro de João Redondo. Faleceu no dia 25 de maio de 1982, em Natal (RN).

Dele, já publicamos aqui no Poesia Subterrânea, uma seleta de poemas do livro Antologia Poética, seu único livro de poemas. Contudo, um dos nossos editores, Victor H. Azevedo, aventurou-se em hemerotecas, pesquisando sobre a vida e a obra de José Bezerra Gomes por via de jornais e revistas, e acabou por descobrir 7 poemas inéditos, que não constam na Antologia Poética. Victor também descobriu inúmeros fatos sobre o poeta, que ele pretende reunir em uma plaquete, intitulada JBG, a a ser lançada, possivelmente ainda este ano.


***

Doralice, a multiplice...

A música não é porque não estão tocando...
O artista também não porque não estão pintando...
— É Doralice, a inúmera,
saindo das chamas do fogo,
cavalgando nas ondas do mar...
A noiva não é porque não estão bordando...
O recém-nascido também não porque não estão chorando...
— É Doralice, a multiplicada, vestida na minha sombra.



***



DA MINHA TERRA EU TAMBÉM CONTO...
(poema bissexto de José Bezerra Gomes)
                                   (Para Hélio Galvão)


Na minha terra tem vaqueiro derrubador,
cantador e cangaceiro,
chapéu-de-couro, gurinhém, papamarelo,
Jararaca, Fabião, Jesuino Brilhante...

            — Minha mãe chamava-se Antônia,
            — meu avô chama-se João,
            — meu pai chama-se Vicente,
            — eu me chamo Fabião...

Na minha terra tem algodão,
feijão verde, milho-assado,
crôa-de-frade, pau-de-espinho...

            — Os espinhos do sertão
            — trago todos na memória,
            — Mandacaru, xiquexiquei,
            — macambira, palmatória...

Na minha terra tem tutano-de-boi,
panelada, jerimum com leite...
Chouriço-de-porco, mel-de-abelha...

            — Xiquexique é pau-de-espinho,
            — imburana é pau-de-abeia,
            — rosário de besta é canga
            — paletó de nêgo é peia...

Na minha terra tem braco, tem mulato,
tem caboclo, negro-cativo,
moça donzela, senhora dona...

            — perna de nêgo é cambito,
            — peito de nêgo é estambo,
            — barriga de nêgo é pote,
            — roupa de nêgo é mulambo...

Na minha terra tem graviola,
melancia, maracujá,
imbú maduro, quixaba doce...

            — Dá milho, feijão,
            — tem fruta, tem cana,
            — melão e banana,
            — arroz, algodão...

Na minha terra tem queijo-fresco,
cuscuz-de-milho, carne-de-sol,
canjica quente, manteiga-da-terra...

            — Com vinte dias de chuva,
            — logo após a vaquejada,
            — chega a fartura do leite,
            — manteiga, queijo e coalhada!

Na minha terra tem cigano-do-Egito,
curandeiro, benzedor,
matador-de-onça, mestre professor...

            — Um bê com a bê-a-bá,
            — um bê com é bê-é-bé,
            — um bê com i bê-i-bi,
            — um bê com ó bê-ó-bó...

Na minha terra tem concriz, sangue-de-boi, ribaçã,
galo-de-campina, beija flor,
maracanã, papagaio-falador...

            — No sertão é belo ver,
            — a seriema cantar,
            — a onça roncar na serra,
            — a arara gritar no ar...

Na minha terra tem adivinhação,
história-de-Trancoso, desafio...
— Mandou dizer el-rei nosso senhor
que vossa excelência contasse outra...


***


Espelho das Cinco Faces



Minha avó
mãos caducas
cabelos brancos
cercada de netos
os filhos abençoando...

Minha infância
fitas de Tom Mix
medo das almas
bancos escolares
lições decoradas...

Minha terra
fogueiras acesas
milho assado
fogos do ar
Senhor São João...

Minha riqueza
notas de maço de cigarro
a meninice correndo nua
pátio em roda do Brejuí
meu cavalo de pau galopando

Minha primeira namorada
mãos frias faces coradas
coração batendo olhares furtados


***


Meninice


Minha primeira arma
branca
foi uma rucega...

Menino desadorado...

E meu maior
desejo
era ser cangaceiro...

Zé Moleque...
Jesuíno Brilhante...
Capitão Antonio Silvino...


***


Balada do homem podre ressuscitado


Estendo-me nos braços
Sou Ele... Sou Ele...

Deploro ressuscitado
o filho anjo desprotegido
morto insepulto pagão.

Choro ressuscitado
   filha esquelética
desnaturada
órfã de pai vivo
nos braços da mãe viúva...

    Covarde... Covarde...

Tenho sede
sede de sede
sede do próprio sangue...

Meu santo
São Sebastião...

Sou Ele... Sou Vós...

Bêbedo rindo chorando...

                                                Currais Novos, maio de 1950


***


Nem tudo
foi
sem eles


***

Meditação para evocação da cidade multiplicada


Quando meus olhos
encantados
Contemplarem
a cidade
multiplicada,
Apontai-me todos
A rua em que guardei minha infância.
A casa
singela
solidária
olhando para a Praça Cristo Rei.
Sede por mim,
quanto por ela mesma,
a cidade toda multiplicada.
Facultai-me o dia
amanhecendo
para a beleza
da luz do sol
vivificando o mais obscuro batente
da cidade multiplicada.
Deferi-me o silêncio da noite enluarada
revelando-me a imagem infinita
da sombra da torre da Igreja Matriz
de Nossa Senhora Sant'Ana
glorificando o patrimônio do tesouro
eclesiástico
da cidade multiplicada.
Sede por mim mesmo, uno,
E por ela mesma, única,
A cidade de Currais Novos.


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