domingo, 20 de novembro de 2016

José Bezerra Gomes - Antologia Poética



Nessa antologia, publicada em 1974, Luis Carlos Guimarães escreve, já no prefácio, introduzindo o leitor sobre o temperamento de edição contínua que tinha o escritor: "A tardança em torná-lo conhecido do público ledor deve-se, sobretudo, ao temperamento arredio do poeta, cujo labor silencioso de mais de trinta anos obstina-se em trabalhar os poemas, modificando-os, reestruturando-os e, com frequência, reduzindo o seu corpo original, com uma meticulosidade de pesquisador de laboratório [...] essa aridez é consciente a tal ponto que poemas longos sofreram redução, mais das vezes, mutiladora da sua estrutura. Isto foi o que aconteceu em 'Com a Melancolia, na Minha Rua', originalmente com 25 versos, forma que preferimos conservar na presente seleção, e numa versão atual minimizada a 'Senhor,/ amanuelaram/o mundo'".

Seus poemas tem uma forte influência de Bandeira, Drummond, mas principalmente Oswald Andrade, de quem herdou o poder de síntese, levando-a ao extremo.

Abaixo, alguns poemas da antologia:


***

MEALHEIRO

Meu avô
a camisa por cima da celoura
no mourão
da porteira do curral
de pau a pique
cheirando a estrume

Contando
os bezerros
novos
das vacas paridas

Minha avó
no santuário da capela
o rosário de contas
de capim santo
nas mãos devotas

Nos terços
nas novenas
de maio
o mês das flores

As espigas
de milho
verde
bonecando
nos roçados

Os algodoeiros
casulando

As ovelhas
malhando
na sombra
das quixabeiras

O rio
a cheia

A água
barrenta
da correnteza
transbordando
pelas vazantes do rio cheio

Os sapos
os cururus
cantando
dentro das noites
empoçadas

As tanajuras
esvoaçando
na luz
das lamparinas

As flores
do mato crescendo
pelos caminhos orvalhados
rescendendo

Os meninos
gordos
de terra
sob a chuva
sob o inverno
se banhando

As veredas
trilhadas pelos preás

Os ninhos
dos concrizes
balançando
na copa das braúnas

As asas
dos urubus
pairando
paradas
no céu encandeando

A barra das madrugadas
O aboio dos tangerinos

As alpergatas
de meu avô
arrastando
nas lajes do alpendre
do mundo
de minha infância. 

***

O CÂNTICO DA TERRA

Nunca percorri as cinco partes do mundo
("Oropa, França e Bahia")
Mas vi os retirantes da minha terra
nas longas caminhadas das grandes secas
como se fossem os sobreviventes de todos os cataclismas

Nunca vi o espetáculo
das belas cataratas do mundo
Mas vi os rios da minha terra
correndo nas grandes cheias
com a violência das correntezas
que nunca foram navegadas

Nunca ouvi as grandes orquestras sinfônicas
regidas pelos grandes maestros internacionais
Mas escutei o toque do cego
das feiras nordestinas
como se uma lágrima estivesse rolando
na face de todos os cegos do mundo

***

COM A MELANCOLIA NA MINHA RUA


Senhor, cotidianizaram a vida,
com escassez geral da alegria.
Senhor, mercantilizaram a vida,
com integral renúncia da poesia.

As ruas estão repletas, Senhor,
repletas de Manelões,
seres cotidianos,
criaturas pluralizadas,
com total embrutecimento,
absoluta carência de verve

Os cafés estão completos, Senhor,
completos de Manelões,
seres habituais,
criaturas comercializadas,
com grande dano para a discussão,
sensível falta de assunto.

As praças estão cheias, Senhor,
cheias de Manelões,
seres melancólicos,
criaturas cotidianizadas,
com notório prejuízo para o discurso,
rigorosa proibição do aparte.

Senhor, amanuelaram o mundo,
compadecei-vos Senhor, do vate,
de João, Pedro e Paulo, Senhor.


***

MENSAGEM

Os que vão
notícias dos vivos

Os que chegam
notícias dos vivos

Todos irmãos

Padeço
desse
epitáfio

O de haver
bêbedo rindo ou chorando
na alma
promulgado
um dos mandamentos
do catecismo
que em menino
nas mãos me puseram
infantis 

***

TODOS

Irmãos

***

CIRCO


O palhaço obrava prodígios
diante da plateia estupefata...

O domador de feras,
exibindo o peito medalhado,
administrava ao rei dos animais
os gestos da completa obediência...

O malabarista, engolindo labaredas,
monumentava o silêncio geral...

Os pródigos ofereciam mais bebida...
Os mais irreverentes segredavam boatos...
E os obscenos se compraziam anedóticos ...

***

ADIVINHAÇÃO


Que mais
te vulnera
infante?

O pus do ódio

Que mais
te vulnera
infante?

O ódio do pus

Que mais
te vulnera
infante?

O ódio em pus

***

A ESTRELA E O PASTOR

Joselina
multiplicada
saindo das chamas do fogo
cavalgando
nas ondas do mar

Vestida na minha sombra

***

SEMPRE SÁBADO

Naquele
sábado
a música
daquele
sábado

***

LÁPIS

Confesso-me
de assim
ter sido
Ainda que não fosse mais

***

VOO

Semblantes

contritos

***



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