terça-feira, 15 de novembro de 2016

Clotilde Tavares - Bilhetes de Suicida




Clotilde Tavares, nasceu em 1947, em Campina Grande. Gradou-se em Medicina pela UFRN, mas atuou, a partir de 93, exclusivamente de atividades artísticas e intelectuais.
Abaixo alguns poemas do seu único livro de poemas, Bilhetes de Suicida, publicado em 1987:

***


Pouco preciso
para ser feliz:
um batom,
uma blusa negra e alguns colares.
Um livro de poemas
aberto em qualquer página.
Um elepê de Piazzola
na vitrola,
e a máxima distância
do eterno replay
dos bares de fim de semana.
O luxo de algumas atitudes insólitas
e um caderno como este
onde escrevo,
diariamente,
bilhetes de suicida.


***


QUARENTA ANOS

para Allen Ginsberg


& eu
que uivei como um cão danado pelas esquinas da década de 60
& eu
que me encharquei de drogas & sexo & rock nos inferninhos da década de 70
& eu
que me banho de álcool & solidão nas páginas da década de 80
continuarei sendo aquela poetisa maldita meio beat meio louca
meio rock meio boba & tão necessária quanto uma garrafa vazia
de refrigerante ou um copo de papel usado?

continuarei derramando o meu sexo no asfalto das avenidas
ensopadas de sangue & vidros partidos?

continuarei dividindo o meu rosto nos retrovisores dos táxis
& xerocopiando o meu corpo em cada farmácia de esquina?
& se não tivesse feito tudo isso

& se não fizer tudo isso
vale a pena
ainda
estar viva?


***


ZOOM


A bolsa, o traço de lápis,
os óculos e o sapato bicolor,
a aparência dos gestos.

A mão de unhas e dentes
e as frases escritas sem muita fé
na poeira das mesas.


***


ITINERÁRIO DA SOLIDÃO


Domestico a angústia,
Corto delicada fatias de solidão para o jantar,
gelo o vinho,
escolho as taças,
acendo as veias.

O meu quarto tem bandeiras.
Caíram todos os vestidos dos cabides.
O gelo derrete.
O telefone tocou: foi engano.

Deixo atrás de mim portas abertas,
tomo táxis,
invado bares,
provo garrafas
e bebo bocas incandescentes
de álcool
e dentes.

Em algum lugar do mundo
espero a madrugada
e meu corpo sangra
duro e tinto
um poema.

De volta à casa
toco de leve os móveis.
Fecho as portas,
leio os classificados,
atraso os relógios.
Alimento a medusa
e para mim frito cebolas.


***


PORTRAIT

para Flávio Américo


Quero uma foto minha
como me vejo:
de frente e
absolutamente quieta.
Olhos abertos
e a mão esquerda
tocando de leve a face.
Nos dedos, um cigarro aceso.
E penso.


***


WAR GAMES


Antes do combate
a vigília:
fria hora de pensamentos.
Depois
sento no campo de mortos
e me delicio com teu corpo,
teus olhos cegos de peixe.
Para sempre muda a tua boca parva
e teus conceitos filosóficos
profundos como um pires.
Para sempre extinta
tua existência de mosca.
Para sempre calado
teu hálito
gelado
de cigarro
mentolado.


***


Eu,
que li páginas em branco
que dormi sem lençóis
que pari filhos mortos
eu
cansei.


***

CÁLICE


Beba formicida
ou esqueça.

***

QUEM AMA NÃO MATA?


Eu te amo
muito
no escuro
do quarto
e depois
pergunto
se você
gostou?

***

DOMINGO À NOITE


Exploro delicadamente
com as pontas dos dedos
tuas costas
nuas.
Impiedosamente
dormes,
enquanto eu,
sozinha e abstêmia
como, com maioneses,
dezessete gols fantásticos.

***

GOOD MORNING


Mordo o fruto matinal do dia
e deixo o seu sumo
lentamente constranger minha garganta.

Ao sol me entrego
e em seu hálito
me banho,
enquanto o mel da manhã
me perfuma os seios
como rosas à janela
derramando pólen sobre o mundo.

***

PAPO DE BAR


Não me provoque.
Sou doida
e quando bebo
fico um porre.
Cai fora.
Estou com sono.
Se você insistir mais
eu me apaixono.

***

MULHER SEM PASSADO


Já pensou?
Sentar
na mesa do bar
e não ter nenhuma história
pra contar?

***

QUARTO DE CASAL


Melhor quando se tem dois:
um na minha casa,
outra na sua.

***

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