terça-feira, 22 de novembro de 2016

Marize Castro - Marrons Crepons Marfins & Rito



Marize Castro - poeta, jornalista e editora - nasceu em Natal, em dezembro de 1962. Editou o Jornal Cultural O Galo, da Fundação José Augusto, no período de 1988 até 1990 e a revista Odisséia (CCHLA/UFRN).

Estreou em 1984 com o livro Marrons Crepons Marfins, o qual antecipa um diálogo com Ana Cristina Cesar, poeta que só atualmente vem recebendo uma maior atenção da crítica e do público. Fato que evidencia, desde o início, o comprometimento da natalense em construir sua obra com novas possibilidades. Além disso, esse "primogênito" é um marco no contexto literário norte-rio-grandense, por trazer uma garga sensual livremente e essencialmente feminina, sem pretensão de pedir desculpas por expressá-la - porque não devia e não deve pedi-las. A também editora, surge como um protesto, num ambiente provinciano e residualmente machista. E, também por isso, rompe as barreiras da província e repercute em João Pessoa, Recife e, posteriormente, no Sudeste, após ter sido descoberta por Inácio de Loyola Brandão.


Seu segundo livro, Rito (1993), dá continuidade à busca por novas formas de falar, novos experimentos, aliando à sua voz, desta vez, principalmente ecos de Orides Fontela - poeta que assim como Ana C, só agora vem atraindo uma maior atenção para sua obra - mas também pistas de leituras de Elizabeth Bishop, Emily Dickson, Virginia Woolf (a loba) e Zila Mamede, encontradas nas epígrafes  ou no corpo de alguns poemas. É um livro que traz um quê de andrógino, uma busca pelo simples e pela grandeza do que não compreendemos. Sua poesia é grande, por enxergar a grandeza desses cacos dos cotidianos, muitas vezes interiorizados e ela não esconde os cortes e grita a dor que eles causam, porque não há outra saída. 

Escritoras ou não, Marize é todas elas e por elas/com elas, grita, nesse silêncio que é tão importante e demarcado na sua obra, no cuidado com a síntese que vem a ser uma das suas principais características, como assinalou Haroldo de Campos.

Seus poemas vêm sendo traduzidos por poetas estrangeiros como: Steven White (EUA), Joan Navarro (Espanha), Jesús Sepúlveda (Chile) e Mariano Shifman (Argentina).


Publicou também:

Poesia:

Poço. Festim. Mosaico. (1996).
Esperado Ouro (2005).
Lábios-espelho (2009).
Habitar teu nome (2011).

Diversos:

Se esse humano dos meus gestos (2003).
Rio de Grande Sol (2007).
Além do Nome (2008).
O silencioso exercício de semear bibliotecas (2011)


***

Poemas do Marrons Crepons Marfins (1984)



Capa: Nei Leandro de Castro / Marcelo Mariz



O arco e a lira

                        a Octávio Paz

Com o arco
me armo.
Com a lira
engrandeço.
É sempre noite
quando amanheço.
É sempre fatal
quando te esqueço.

***

Fenecer

Feneço na ausência
dos homens cor de bronze
do prepúcio de púrpura.

Quem me lapidou
esqueceu de me tirar
o veneno.

Ateio
fogo na minha própria
teia.

Como quem preserva fortalezas
corto minhas / alheias
veias.

Feneço, infinitamente
na presença dos homens
que têm grandes pés e nenhuma fé.
Que me rasgam a carne
e me sepultam em suas glandes.

Não fosse
uma pessoa de múltiplos escudos
viveria a vida toda
com um único vestido
de veludo.

***

Entre setas

Nesse lance de dardos
O alvo
       é
       você.
êxtase entre
              setas
olhares
que por si só
traçam
      arestas.
Quantos fios
hei de tecer
antes de em qualquer

alguém
me perder?
Em quantas docas
hei de me esconder
se todas as vértices
me levam sempre
para o mesmo lugar?
Hei de me lançar
em terras
           firmes
ou
me firmar
           em alto
                  mar.
Se nada nem ninguém
encontrar, nem mesmo
                         um naufrágio
                         um segredo
me abandonarei
aos espasmos
de um vibrar
          de dedos.

***

Olhos viram topázio?

À meia luz
não faço dramas
nem hesito.
Leio Pound.
Olhos viram topázio?
Conto até dez
e me emolduro.
À beira-mar
reverencio as feras.
Detenho-me, imersa.
Sofro.
Por que a paixão tem de ser tão cega?


***

Nódoas

Declino
ao mesmo tempo
que o vento.
Empilho
nódoas de sangue
                   e sonho
diante de um perfil
                  exangue.
Todo rio tem sua margem.
Todo alguém tem seu par.
Recolho
grãos de areia
sob  o olhar
                   ávido
das rochas
que já não podem
                 andar.

***

Antonin

Artaud
tal qual você
aqui estou.
Às vezes endiabrada.
Outras, suicida.

***

À margem
                 a Ana C.

Recebi pelo correio
a blusa de seda negra.
Não a vesti.
Espero instruções in loco.
Corto os pulsos
ou me enforco?

***

Provérbio

Em todo poema
              há uma hiena
pronta a rir
              do leitor
              que se atreva
              a fugir
              sem receber
              a senha.

***

Senhoras e Senhores

Peço licença
para dizer
que a libido de vocês
está caduca
que as tesões de vocês
são antropofágicas
engolem todo orgasmo
Senhores não fiquem pasmos
Senhoras não fiquem rubras
Vão para suas casas
lá vocês encontrarão
várias criancinhas "lúdicas"
Marcelo está com gonorreia
Tereza vai abortar
Cecília está amando Silvana
Senhoras me deem licença
para dizer
que ontem vi todas vocês
nuas, durante a sauna
vocês suavam
e pareciam tão flácidas
que me achei uma crápula
ao tocar minha carne rígida
Senhores me deem licença
para dizer que hoje
eu vi todos vocês
marcando encontro
com adolescentes
menores de 18 anos
Senhoras e senhores
perdão
não pretendia aborrecê-los

***

Fotogramas

Um still basta para meu disfarce
ficar completo. Há em mim um voyeur
que assobia pelas madrugadas suspendendo
tesões como se fossem leves agulhas. A 100 Km
por hora faço a última tentativa. Largo o
volante. "Tudo é aconchego árido".
Preciso de um cais, ou palco, para uma
récita face a face. Não me faço de rogada,
não há baile todo dia. A juventude não
passa de uma espaçonave desmentindo
os anos. Vã ousadia.
Fico o espelho. Cético êxtase. Eis minha
fantasia.
Sobreviver ao narciso. Quem há de?

***

   Capa: Afonso Martins


Poemas do "RITO" (1993)


Salgar os pés e unir as mãos. Na vertical.
Numa confissão de ternura.

***

A teus pés
Palavra
nada tudo sou

Acovardo-me
Largo o remo

Sou tua escrava
Sirvo-te do bom e do melhor

Lustro o cálice em que bebes
Resplandeço quando me feres

***

VESTÍGIOS

Resta-me este arrecife.
Vertigem de ostras.
Esconderijo de pérolas.
Resta-me este precipício
sonhado às claras
desmentindo as trevas.
Restam-me esta fábula
e este homem silencioso.
Quase transparente.

***

MILENAR

Jamais retive em minhas mãos
esta dor que agora há
Por muitos anos fui somente sonho
Somente seda
Neons e pérolas
Mulher de penas
Empavonada
Apavorada em cena aberta
Atenta ao azul que há na rosa
Bailando em antigos templos
Entre segredos falsos
e fados raros

***

Devolva-me a cólera, a lanterna mágica,
que transportei comigo enquanto te amei.
Devolva-me a morte, a doença, a saúde,
o caos, o cais, as âncoras, os segredos,
teus ataques me deixaram forte
teus gozos me atingiram a alma
me fizeram odiar o amor.
Devolva-me as fantasias, as árvores sólidas
plantadas à margem de um delicado homem
que caminhava certo para a sabedoria dos pássaros.
Devolva-me o néctar, o túmulo dos milagres,
a liberdade dos escândalos, os bosques, a lei da botânica,
a letargia da não-paixão,
o doce repouso nas águas da noite.

***

HERANÇA


                            para Orides Fontela



agora eu te vejo.

E necessito desta semelhança.
Desta Herança.
E até mesmo desta fúria
que sempre findará

em ternura.

***

SAGRADO


Dos teus bons olhos jorram lendas.

***

AFÃ

Minhas harpas em arpejos
denunciam o meu Desejo.

Delicado rapaz, eu te chamei porque me quero assim.
Dentro de ti.
Sólida.
Expelindo líquidos.

***

ESPELHO NOUVELLE VAGUE


Procuro um outono uma margem uma nave um ombro.

***

O AMOR

O amor de tão errante
vira lince
e já tem asas
vira ave e já é rápido
oculto
recolhe lanças
agudas lanças
que o homem esconde em chuva santa
tudo é lampejo
iluminação
tudo é dor
excesso
milagre
lágrima
tudo é vinho
e envolve Deus
tudo é claro
e da noite precisa
tudo é breve
longínquo
ruínas da alma
procissões de véus
tesouros de nada
pálpebras que se cerram
fendas que não tardam
quebram
absorvem
e partem
quando é sol
quando é calmo
quase topázio

***

Quiseram-me ostra.
E eis-me ostra.

Quiseram-me noite.
E eis-me noite.

Quiseram-me ruína.
E eis-me ruína.

Haverão de querer-me ainda?

***

O homem que eu toque
deixará de ser homem.

Será flor, trilho, estrada

ou anjo.

***

            (De Lição VI e Lição X, de Geografia III, de Elizabeth Bishop)


Elizabeth sabia o que é a Geografia
o que é a Terra
qual é a forma da Terra
de que está composta a superfície da Terra.

Elizabeth sabia o que é um Mapa
quais são os Pontos Cardeais num Mapa
em qual direção do centro do Mapa
está a Ilha, o Vulcão, o Cabo, a Baía,
o Lago, o Estreito, as Montanhas, o Istmo,
o que há no Este, no Oeste, no Sul, no Norte,
no Noroeste, no Sudeste, no Nordeste, no Sudeste.

Elizabeth virou Folha, Rio, Céu.

***












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