terça-feira, 22 de novembro de 2016

40 anos de "Falo": um livro revolucionário que permanece no silêncio.

Capa: Afonso Martins


Paulo Augusto é poeta e jornalista, nasceu em Pau dos Ferros - RN a 3 de agosto de 1950. Formado em Jornalismo na UFF de Niterói - RJ. Trabalhou nos jornais O  Fluminense (Niterói/RJ), Última Hora (RJ), Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e dentre outros. Nos anos de chumbo, surgiram alguns periódicos alternativos e, dentro desse contexto, aparece o Lampião da Esquina, primeiro jornal, no Brasil, voltado exclusivamente para o público gay que circulou de 1978 e 1981. O poeta potiguar colaborou com o jornal desde sua fundação, ao lado de nomes como: Glauco Mattoso, Leila Míccolis, João Silvério Trevisan, Caio Fernando Abreu e Aguinaldo Silva. 

Anteriormente ao Lampião, mas já sofrendo as represálias da ditadura militar, Paulo publica o livro "Falo", em 1976, e é considerado uma das primeiras publicações, do país, com poemas exclusivamente homoeróticos. O livro, genial desde a ambiguidade que traz no título, é dedicado a Madame Satã e era vendido corpo a corpo na Lapa.  Os poemas são verdadeiros protestos a favor da causa gay e contra todo tipo de abuso e preconceito. Trazem ainda marcas claramente autobiográficas que nos permitem imaginar como era a vivência daqueles que não temiam ser quem eram, dando a cara à tapa, em busca de dias melhores. Imagine isso numa das cidades mais efervescentes, onde as torturas eram mais que proporcionais à vontade de mudar. 

Em 1982, regressa ao RN, fixando-se em Natal, trabalhando nos principais jornais da cidade, assinando colunas polêmicas e bem-humoradas, porque Pagu, como também é conhecido, mudou de cidade, mas não parou de ser um sonhador. Com certeza uma pessoa muito à frente do seu tempo e, talvez, por isso seja pouco lembrado e até mesmo boicotado em meios acadêmicos e culturais. É uma lástima que  "Falo", seu único livro de poemas, que tem uma segunda edição pelo Sebo Vermelho (2003), permaneça silenciado até hoje, pelo o que representa, pelo período que retrata, pela sua liberdade em experimentar das múltiplas possibilidades da linguagem e, ainda assim, ao lê-lo, percebemos um tom de verdade, próprio de quem escreve o que vive. 

***

AVANT-PREMIÈRE

Não foi medo que senti
quando você imenso
- era a primeira vez –
me rasgou a blusa
inebriado e tonto.

Eu era virgem
como todo mundo um dia foi
mas isto não vem ao caso. Fardos pesados,
no canto do muro, tu e eu.
Vislumbrei à luz murcha da tarde
tua fortaleza pontiaguda
e me recordo: meu coração
recuou.
Mas juntei minhas forças todas
e num relance lembrei-me
que mamãe sempre dizia:

- Homem é para-mulher,
e mulher é para-homem.

***


E NO ENTANTO É PRECISO VIVER

Caminhões continuam saindo
do Nordeste
carregando gente
como gado. E eu choro.
o homem que amo viaja
na carne brasileira,
no sangue latino
- trazendo um punhal.
Às 8 horas da noite
o continente estremece
e o povo não atina
o que fazer com os órgãos
genitais da gente.
E, no entanto, mil crianças
de todos os sexos
acabam de nascer.
Amarro minha fome de amor
fortemente
com os cordões de miséria
da minha cidade.
Boto as tropas na rua.
Temo pelo futuro. Danação.
Você que não sabe o que fazer da vida
pegue-me pela mão
e me carregue para o vazio
do que há-de-vir.
Eu também profundamente
entediado com isto tudo.
E, no entanto, é preciso viver.
As gerações futuras nada têm com isto.

***

ESTATUTO

Ser bicha é ser enquadrado
no inciso C
do parágrafo terceiro
do artigo 24
da lei de segurança inter
nacional.

É ter medo à flor da pele,
é ter a língua ferida,
a boca rubra,
o beijo fácil,
o amor saindo pelos poros.

Ser bicha é um estado de espírito,
de choque, de sítio,
de graça.

Como o artista pinta seu quadro,
como a luz que filtra
a janela do quarto
a lua bojuda no céu.

Ser bicha: ser inspecionado,
é ter revirado o passado
e investigado o medo –
subindo o cheiro saudoso
dos primeiros tempos.

É a polícia, acesa e trêmula
no encalço do baitola
amedrontado.

Ser bicha é ser metade gente,
a outra metade - o povo,
gargalha garganta a dentro

ri e galhofeiro.

É Ter parte com o demônio,
aprendiz de feiticeiro.
É estar entre, no meio, ser meta-de
Outros homens.

***

VAE VICTIS

Sensação de cão sem plumas
a máscara
a farsa - o medo
isto tudo nasceu comigo.
A primeira mentira dita,
a gente se documenta,
se habilita
se exercita - e acaba se acostumando.
A enfermeira é porta-voz.
Oficiosa, a víbora morde, sopra,
e cospe um verbete: Homem!
Meu pai acredita,
minha mãe se deleita
o povo festeja. Bandeiras, discursos,
charutos - bandas de música.
Beberam o mijo do menino
magricela - sem lhe perguntar
sem lhe auscultar - a sina.
Toda festa tem seu preço.

Etiquetado, recebo no berço
a humanidade
me olhando e rindo
um riso que eu não entendo
e que não me larga.

Só não ri o anjo. que me protege
assexuado, a-ético, aéreo,
sobrevoando o meu ser
e dizendo:
- Vai, Paulo, ser gay na vida!
No espaço geográfico do discurso há-sumo.
Nihil obstat.

***

A MULHER QUE MORA EM MIM

A mulher que mora em mim
de noite sacode a saia,
remexe e bebe,
intumescida e apaixonada.
Nas noites que eu não quero
ela me atira nos braços
de homens que eu nunca vi.
Pensa, nostálgica, canta,
e embeleza o rosto
como um girassol.
Anda todas as ruas,
beija todos os homens,
se procura.
Encarcerada em minhalma
faz de mim ofício.
Requebra quando não vejo,
canta quando lamento,
romântica, frenética, bêbada.
Não me infunde medo,
mas só me apavora
quando nas horas graves
do meu dia
quer sair para trottoir.
Feroz, voraz, insana,
quer amar a cidade inteira,
ser anel de toda mão,
chapéu de toda cabeça.
Aprendi a gostar dela
e dos sons arroubos
um pouco demoradamente.
Coexistimos equilibrados,
largos e satisfeitos
a maior parte do tempo.
Há dias que ela alucina:
quando eu durmo ela acorda,
quando canto ela cala,
silencia quando falo.
Me investe,
me explora,
me oprime - mas eu gosto.
Compreendi finalmente
que em mim está vivendo
a síntese crucial do mundo:
aqui os contrários se unem,
poderosa, apaixonada, eterna
e furiosamente.

***

ATENTADO AO PUDOR

Para prender-me
a polícia
por a-tentar
- o pudico e ávido
público
termina por decifrar
a mensagem
dos órgãos de segurança
sexual
e mergulha
sob as cobertas
             comigo.

Deliciosamente infratores
simultaneamente
gozamos
entre relinchos, unhadas,
beijos e coronhadas.

***

FELICIDADE

Procuro a felicidade
como quem cata uma agulha
às quatro horas da tarde
num matagal do arrabalde.

A polícia me vicia.
A-guarda, solícita, me guarda.
E permanece à distância
expectando fuxicos.

Duas mãos que me procuram
liames, cordas, arames,
se perdem - me perdem
no matagal de arrabalde
onde a felicidade
às quatro horas da tarde
é uma agulha
que a polícia aparvalhada cata
sem nunca achar - a gente
sempre perdendo.

O jogo.

***

PETIÇÃO TERRORISTA

Um dia que eu estava quieto
João revelou que me amava.
Incendiei.
Como se um jorro
de napalm me tivesse atingido.
Meu coração, desolada cratera,
vi João. Como uma pluma,
um B-52,
possante, rijo, sobrevoava minhalma.
Fui aos ares.
Desfraldei-me,
a ouvir bandas marciais.
Olhei atento seus olhos,
medi seu porte, senso
e falo:
- João, pense no que diz como se morresse.
A vida eu vejo
como um desdobramento de mortes.
Quero viver todas elas.
Ele me olha, nostálgico.
Seus cílios, arames farpados,
fecham-se comigo dentro.
Eu vejo:
mulheres batendo roupas,
as panelas vazias, um filho
repulsivo no colo,
os cabelo de azinhavre,
os dentes postiços,
a missa aos domingos
e a xepa no final da feira.
- Não, João. Mata-me três vezes,
para lavar tua honra
pois eu te trai - agora,
mesmo antes de dizer
que aceito.

***

RAÇÃO BALANCEADA

Pudibundo, aparatoso,
o homem togado,
convicto e obeso,
absolve o criminoso
de guerra – patriota,
festejando sua indômita
e voraz bravura.
Tem pressa, tamborila,
a voz, rouca, tange:
- O próximo!
As grades rangem,
Rebanhos pastam, aguardam
a vez.
Vadios, prostitutas,
bichas loucas,
estelionatários
que um camburão despejou lá fora.

Fedem

O magistrado ri, balofo,
cego e balança a saia.
Protege a nação
da desregulada
e momentosa dissolução
dos costumes.

Grave e generoso,
grasna: - O próximo!
O código bordeja a corja
- a sala cheia, barganha.
Como reza a lei,
a salvo a tradição fica
de famílias quietas
a gerar mundanas, a
desovar foras-da-lei
inéditos e rechonchudos.

***



***


SYSTEM-ATTICA

Porque sou fresco,
hábil, lépido,
a gerontocracia sente medo,
se arrepia
como um rato.
Cospe leis, editos, atos.
Se agasalha, modorrenta, rouca,
recua
na cadeira de balanço
botando graxa
na dobradiça das pernas.
A tosse, a vista cansada,
a velha despótica me espreita.

Quando exibo meu porte,
meu corte,
me chama de trans
                           viado
me cobra pedágio - a doida
quer me ver casado,
parindo mão-de-obra
para eternizá-la.
Para destruí-la, esterilizo-me.
Minha praxis.
Por puro capricho
me amedronta, me persegue, me degrada.
Nego, renego, faço ouvido mouco.
Se me encontra pela rua
madrugada
quer violentar-me,
ver meus documentos,
me revista e se delicia
apalpando minhas partes,
pensa em coito.
Nego, renego, abomino. 
E ficamos eternamente
nessa cachorrada.

Quer me tributar,
me chupar – foder-me
porque sabe que é maravilhoso,
ser fresco
como um dia de Domingo
ensolarado e pendurado
no varal

***

NA PENSÃO A FLOR DE MINAS

O rapaz do quarto 14
é rebento, 24 anos,
da tradicional família mineira.
Olhou nos meus olhos
um dia
seu pecado feito carne
e viu meus cílios baterem.
Ele estremece,
foge o olhar - mas fala.
Disse-me que tem muito medo.
Nas noites frias de junho
ele atravessa a sala
e demora-se no banheiro.
Passa pela minha porta,
estou no leito,
mas não vejo, sinto.
O chão de táboas me diz
que ele foi para lá
ou que ele está de volta.
Me olha, estremece, tem medo.
Eu gosto de vê-lo assim
e ele me parece
feliz quando meus cílios batem
e descobre no meu olho
seu pecado feito gente.
Ouço tudo que acontece
dentro dele
no quarto 14.
Sua comunicação é na cama,
quando gira, tosse,
contorce seu medo - ela range,
ele ruge, mas não tem coragem.
Deitado, espero, seu pecado,
batendo os cílios e lembrando
a disciplinar Minas Gerais. 
Seu pecado, a vontade, deitado
estou sempre,
esperando que na ida para o banheiro
a cupidez mineira
da família tradicional
permita o medo dele vir
pelo meu quarto
misturar na noite fria de junho
nossas humanidades
no pecado amplo,
fofo,
que deitado estou para isso...

***

NO COMEÇO VOCÊ FOI MAIS GENTE

No começo você foi mais quente.
Entrava batendo a porta
correndo - me entregava as flores
murchas que o trem secou.
Rondava o prato de leite,
bichano, terno, barbudo,
olhava o mundo por mim.

No começo você foi mais gente.
Andava a rua comigo,
o braço apoiado - e eu
podia ainda beijar
teu rosto e saber por que.

No começo você foi eterno.
Parecia feito em sal.
Eu levava os lábios sôfregos
e ungia o teu corpo todo.
Você não se desprendia,
vibrava em mim,
vivia em mim
trepava.

No começo foi somente amor.

***

BALADA PARA MADAME SATÃ

Madame Satã,
acabaram de me contar
que você andou por aqui.
Não forneceram detalhes,
mas eu imagino.

Gostaria de saber de ti:
possuias algum cãozinho,
cativo, para alimentar?
Havia o teu, particular,
que afagavas e, modorrento,
botavas para dormir - cheiroso?...

Sim - madame divina!
eu penso.
Precursora, poderosa,
Lampião do asfalto.
A Lapa tremia contigo,
vibrava, amava contigo,
trepava.

Pelo menos ficou urna certeza:
vão demolir toda a Lapa,
mas teu nome vai ficar,
enorme - suspenso no ar.
Bojudo, grave,
prenhe de emoção e de glória.

Eu agora estou no palco,
Samuai,
que foi o teu viver.
Mas não tenho tua força
de expressão,
a ginga.
Ogum não quis me dar
- ele sabe...
o chapéu de Panamá, a voz,
as noites, o bordel.
Tudo isto era muito teu,
muito nosso.
Gostaria de te cochichar
as últimas que ouvi na Lapa.
O malandro aposentou-se,
Vive agora de welfare state,
a noite agora é outra,
poluída, massiva,
Lasciva, ainda, mas morta.
Levaste um pouco da Lapa,
ou tudo - a Lapa
não é mais aquela.
Trocaram muito de vez,
e a bunda dela agora é kitch,
sucesso, fora de ângulo, démodé
Ficou teu brinco, o charme,
a tônica, a perna no ar,
capoeira e pinga.
As paredes da Lapa, Satã,
são eternas,
e nelas você está definitivamente,
preto, feroz, uma pedra.

***



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