terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Luís Carlos Guimarães - O Sal da Palavra

[capa: cláudio sendim]


Neste livro, ganhador do prêmio Othoniel Menezes em 1982 e impresso em 1984, Luís Carlos Guimarães faz uma antologia, reunindo os melhores poemas de seus livros já publicados até o momento - O Aprendiz e a Canção, As cores dos Dias, Ponto de Fuga - , com o acréscimo do homônimo, O sal da Palavra. Por conta disso, nossa seleção de poemas abarcará somente este tomo do livro, inédito até aquele momento.

O livro é dividido em duas partes, Assoalho e Porão. Em Assoalho, os poemas são longos, nostálgicos, muitos deles dedicados a outros escritores (como José Bezerra Gomes, Lêdo Ivo e Myriam Coeli). Já em Porão, há uma seleção de poemas curtíssimos, com exceção de Febre, Notícia de Jornal e Valsinha do Aerograma).

***

O SAL DA PALAVRA

, o poema tem mil faces.
Quando necessário usa
outros mil disfarces.
Roupagem onde me oculto
ou me exibo como sol
abrindo a corola do dia.
Ferida esguichando sangue,
pulso decepado por faca
rombuda. Beijo na boca,
tiro na cabeça, festa
no castelo, centauro
na planície, gôndola
enfeitada de flores.
Camaleão em repouso,
verde verde na folhagem.
No caos de Babel foi
a língua mais pura,
a música dos gentios.
Escravo que carregou
as pedras das pirâmides.
Ilha perdida. Âncora
fundeada. Peixe na gruta
do aquário. Barco morto
na areia. Vã escrita
branca de espuma.
Verso e reverso da moeda.
Estrela, estrela-guia,
Aldebarã, Aldebarã.
Praia de pescadores:
Redinha. Cidade
acesa de repente,
só luzes luzindo
no outro lado do rio.
Tato noturno dos cegos
escancarando portas.
Olhar que suspende
o trapezista no ar.
Cavalo ajaezado
no picadeiro do circo.
Olho do farol girando
na treva. Aragem
salgada no trapiche.
Domador de serpentes.
Pasto de mist
ério.
Sal da palavra.
Cal da melancolia.
Tecelão de sombras
vazando os olhos da noite.
Semente de girassol
comida pelas éguas no cio.
Chaga latejante da manhã,
a lâmina do sol cortando
a grama do jardim.
Mosca na sopa, asco.
Último esgar na sala
perfumada de magnólias
e jasmins. Peruca
abandonada na cadeira.
Muleta do lugar-comum
que vai às festas sem convite.
Vômito do bêbado agarrado
ao poste. Rosas que pedem
olhares pelas esquinas.
Canto de rouxinol
no balcão de Julieta.
Mendigo na lixeira
catando restos de comida.
Nostalgia da infância
do homem que já dobrou
o Cabo da Esperança
e avança desarmado
no Golfo das Tormentas.
Menino ouvindo a chuva
no telhado sonhando
com o mar. O mar. O mar
que nunca viu. Paciente
boi pastando no quadro
de Portinari. O presente
por onde passo. Permanente
acerto de contas com
o passado. Sorrateira
mão da escuridão
apagando o candeeiro.
Puro visgo. Fragrância
de resinas amarelas.
Alvura de salinas.
Adeus do maquinista
na janela do trem.
Cordilheira de nuvens
pejadas de chuva.
Legado das primeiras uvas
colhidas na face da terra.
Bafejo de brisa no rosto
da mulher amada. Pêndulo
parado do relógio
esquecido pelo tempo.
Periscópio farejando
novas vítimas. Passiflora
deitada no caramanchão.
Caramelo. Caranaí. Carambolim.
Coreto no meio da praça.
Aventura do corpo
na paixão do movimento.
Grito engasgado
no corredor da garganta.
Paraquedas fechado
na vertigem da queda.
Lágrima brilhando
no copo de conhaque
como grão de luz.
Pátina do tempo.
Velocípede no sótão.
Borboleta azul.
Bolor no porão.
Algas apodrecendo
na praia. Macega
bicada pelos pardais.
Pulso da febre. Lebre
na mira do caçador.
Vinho que acelera
as rotações do coração.
Azulejos portugueses
de velhos casarões
com portões de ferro.
Vento inflando o seio
no vestido pendurado
no varal. A memória
(nem sempre) curta
das pessoas que sofreram.
Crescimento de unhas
e cabelos. Frutas
sobre a mesa. Flores
de matéria plástica
banalizando o ambiente.
A vida. Ah! a vida
já tão kitsch. Sonho
morto levado ao cemitério
num caixão de terceira.
Clic da máquina
fotográfica flagrando
destruição nos campos
de Sabra e Chatila:
o bebê de fraldas,
os olhos arregalados
na morte, a cabeça
despedaçada quando dormia.
Vem de longe no sonho
da semente nas espigas,
no fruto verde ou maduro
arremessado nas vertentes
do escuro, nas clareiras
do dia. Conversa
nas calçadas à sombra
das mangueiras. Caracol
cego, as antenas
captando o sol. Rã
coaxando na manhã.
Lã de limo verde
no fundo da cisterna.
Colisão de vagalumes.
Esfinge decifrada.
Radar da solidão.
Cabine pressurizada.
Mar se agachando
e lambendo teus pés.
Pantera acuada de olho
fosforescente pulando
o muro, mergulhando
nas profundezas abissais,
caminhando com a multidão
na hora do rush. Mapa
da mina. Grilo furando
a pele da noite. Sabiá
solfejando a pauta
da canção. Funeral
de criança surgindo
na tarde num pequeno
caixão coberto de rendas.
Papéis queimados
flutuando ao escapar
de uma fogueira.
Delírio do bêbado.
Angústia do místico.
Espírito do abismo.
Repicar repentino
de sinos. Meninos. Lua
pálida e corcunda
entre nuvens brancas
perseguida pelo vento.
Rosto chamado
à velhice antes do tempo.
Nuvem entrando
na sala do apartamento.
Asas de anjo planando
no estuário congelado.
Cavaleiro da Triste
Figura, a lança em riste.
Saldo de lembranças.
Promissória vencida.
Ressaca na golfada
de bílis. Retrato
na parede: o avô
com a bengala encastoada.
Exercício de amor
na planura da cama.
Tosse, futebol, política
no bar rumoroso e feliz.
Garatuja no caderno
escolar. Mulheres
secas como palha,
incapazes de uma carícia.
Amolador de facas
no pátio do mercado.
Enxame de abelhas
na joia de teu púbis,
tua seda, minha sede.
Cuspe lançado ao ar.
Desalinho da vida
que não se reconhece
no espelho, a barba
crescida, os dentes
cariados. Logro do pó.
Ranço do nada. Pão
da primeira fornada.
Mel do primeiro beijo.
Hálito de lixo, lama
do Capibaribe, Recife.
Guevara ainda vivo
morrendo a cada instante
para nascer de novo,
imolado mil vezes,
mil vezes renascido,
o fio de fogo da voz:
“Hay que endurecerse
pero sin perder
la ternura jamás”.
Lava adormecida
na boca da cratera.
Macia pétala de flor.
Braseiro, fogo morto,
as cinzas da paixão.
Semeadura de aranha
no labirinto da teia.
Palavra não nascida,
projeto de voo,
seta encravada no alvo.
Folha de papel vazia
esperando o poema,

***

ODE MÍNUMA AO ENFARTE DO MIOCÁRDIO

O enfarte não tem sutilezas.
Não manda flores.
Nem um telegrama misterioso:
“Chegarei crepuscular,
vestido de Pierrô.
a) Arlequim”.
Não se permite a cortesia
de um breve telefonema
ou de uma mensagem cifrada.
Sequer deixa um cartão
debaixo da porta.
Nem uma carta anônima
oculta sob o tapete.
Chega sem avisar,
com o estardalhaço
de uma sirene solfejando
um poema rouco.
Bate no peito com um soco.
Não tocaia, ataca
com lâmina rombuda,
fecha as comportas
do vaso coronário,
abrupto se espalha
nos braços e pescoço,
grita no espelho
o coágulo sanguíneo,
a morte iminente,
o vômito, a angústia,
a dor precordial.

Debaixo da língua,
Isordil, lsordil,
chamarei teu nome em vão?

Se o enfarte vier,
atravessarei
a ponte de safena?




Fevereiro/82


***

CONCERTO BARROCO DE ALEJO CARPENTIER

o ponteiro do relógio da estação
saltou a hora da partida
o trem avançou em direção à noite
deixando para trás a cidade
cúpulas igrejas palácios
mansões fechadas pela epidemia
ruas apertadas casas baixas
janelas engradadas príncipes loucos
serpentinas caterva de fantasmas
no último Carnaval de Vera Cruz
safanões da multidão entornando vinho
de garrafões de palha colorida
águas cinzentas céus fumacentos
paredes lambidas pelas ondas
tristezas de mofo à sombra dos canais
aduelas de barris perucas molhadas de chuva
elefantes do Circo Barnum dançando polca
máscaras de alvaiade cartomantes mendigos putas
espólio de ruínas estrépito de címbalos
voo de pombos enegrecendo o crepúsculo
trêmulas luzes de balões incendiados
estrondos na selva acesa de velames e estandartes
trompete de Louis Armstrong delirando a melodia
"I Can't Give Vou Anything But Love, Baby"
num ritmo ao mesmo tempo elementar e pitagórico
sepultando a cidade cheia de rugas e fungos
numa lixeira sideral de pedras inúteis

***

POEMA LÍRICO

No meu poema lírico
a noite vestia-me de solidão
e a morte falava na voz do vento
com inumeráveis bocas de sombra.
Envolvia numa linguagem de silêncio
o amado corpo de anêmona da amada.
O mar era uma canção molhada em seus ouvidos,
verde sonolência em seus olhos.
Uma rosa demente de sol
gorjeava nas trevas repousadas
dos cabelos da amada no meu poema lírico.
Vi o pássaro mensageiro de tempestades,
anunciador de eclipses da lua,
incendiário de primaveras
e cantei sua morte prematura
num epitáfio de voos e distâncias.
Janeiro chegava bêbado de azul
nas crinas de um soneto
que rimava tarde com arde
no meu poema lírico.
A rosa estava morta na mesa
fria, intacta, alheia
ao olhar que a consumia,
à mão que lhe feria a carne,
à boca que a chamava rosa.
Rosa: ilha, incêndio, canção,
no meu poema lírico.
A paisagem antiga da infância
também tinha vez no meu poema lírico
com o toque festivo dos sinos na véspera do Natal,
com as enchentes de abril parando o canto dos pássaros,
com o coreto derramando músicas alegres
na alegria inútil do domingo.
Na praia branca uma mulher queimava
a pele ao sol de setembro,
as mãos cavavam na areia uma fonte de sal,
os olhos se perdiam no horizonte,
no meu poema lírico olhos cúmplices
de errantes veleiros esquivos e naufrágios.
Atrás do meu olhar
se escondiam rios
no meu poema lírico.
Ao meu chamado a aurora
saltava das janelas da noite
e ceifava as brancas espigas da lua.
Meu poema lírico era ornamental
como um jarro de flores
ou um quadro na parede.
Meu poema lírico era o realejo
na boca de um menino
— o aprendiz e a canção.

***

PRESENÇA DE MYRIAM

                                                           "Que o amor é tudo que existe,
                                                           É tudo que sabemos do amor,.."
                                                                                              Emily Dickinson


Mão invisível colheu
a rosa longe do corpo.
Mas permanece entre nós
e em nossa pele sentimos
o estremecer da presença
inteira só de certezas.
Myriam, Myriam Coeli
fez-se imagem e semelhança
dos livros, quadros e móveis
que sobrevivem na casa.
O pão, o prato, os talheres
guardam seu lugar à mesa.
Ouvimos a nossa voz
na sua voz, sem surpresa.
Anjo, nos protege o sono
com o lençol de suas asas.
Na transparência do espelho
ela nos olha e nós vemos
o revelado mistério
na face que nunca foge.
Página marcada em livro,
a leitura interrompida
é retomada na sala
em sua cadeira cativa.
Caligrafia miúda
começa um novo poema
que está crescendo sozinho.
Domingo de Carnaval
ela voltou para ficar:
o coração serenado,
para sempre serenado.





21 de junho/82


***

DOIS TEMPOS DE SAUDADE PARA EMÍLIO SALEM

I

Este não era, Emílio Salem,
o poema que sempre quis plantar
no teu coração como uma braçada de rosas.
Uma braçada de rosas
no teu coração vivo como um jardim,
janela escancarada para o mundo,
mirante de sóis e ventos,
permanente domingo de claridades atlânticas,
arrebatado na alegria de teu riso
mergulhado na sofreguidão da vida,
veia aberta,
nervo exposto,
coração sangrando dos azuis chamejantes da cidade.
Incendiado verão que se abria como uma lua cheia,
de janeiro a dezembro como chaga nunca cicatrizada.
Como tua cidade,
na tua alma ardia o nordestino verão de todos os meses.
Domesticavas as luzes do dia,
construías navios, estátuas e edifícios
com a impunidade transeunte das nuvens da tarde,
esperando a sabedoria e a bondade da noite viajante.
Algumas vezes a voz embebida pelo vinho,
no céu camuflando as estrelas,
o olhar campeando o horizonte,
exorcizavas a chuva enganada
pelo grito coruscante dos relâmpagos,
e no pulmão limpo da noite
escrevias a crônica das gaivotas
perdidas na imensidão noturna do mar.

II

Este não era, Ione,
o poema para Emílio Salem,
emboscado pela segunda vez,
agora numa loja de brinquedos
no inverno de uma calle madrileña
às dez em ponto da manhã,
quando comprava para os filhos
Emílio, Ernesto e Thiago
autoramas, carrinhos e bonecos.
Ele, que tanto amava a vida,
o teu menino de quarenta anos,
tinha no pulso o relógio da morte
e um girassol de fogo no peito,
essa enfartada flor traiçoeira.
Que tenho a dizer? Na tua herança
diária de amor e de ternura
a solidão não rima com esperança.
Da terra que cobriu o corpo
lacrado num caixão de zinco,
que não viste pela última vez,
resta pranto, ausência, desolação.
Juntando a minha dor à tua dor
um soluço sobe na garganta
como grande coágulo de sangue.


dezembro/80

***

REENCONTRO COM O POETA JOSÉ BEZERRA GOMES

Na madrugada de 6 de outubro
sonho com o poeta José Bezerra Gomes
a falar sobre a Utopia de Thomas More.
O poeta interrompe os comentários
ao livro do Chanceler de Henrique VIII
e atrás dos óculos seus olhos miúdos
piscam para a eternidade.
Com um sorriso de inocência e sarcasmo
o poeta revela, paradoxal,
seu compromisso com a vida
— essa cadela danada,
essa massa falida.
Ainda no sonho vejo a sua letra desigual
machucando o poema no papel,
a dizer que a poesia não é vã,
que valeu o seu grito no exílio.





Madrugada de 6/10/1982

***

RIO DE JANEIRO REVISITADO NUMA CRÔNICA DE NEI LEANDRO DE CASTRO

Os motoqueiros aceleram suas motos
até o limite do suportável.
A cidade
não dorme
não ouve
não pensa
e seus habitantes já assimilaram
esses ruídos de fim de mundo.
Por isso não ouvem o bem-te-vi da manhã
anunciando o dia
para os jornaleiros,
os boêmios,
os porteiros,
os madrugadores.
O valente pássaro solitário
canta com toda a força de seus pulmões
contra o aumento dos decibéis,
contra o monóxido de carbono,
contra o enfisema que se alastra
no seu peito de pássaro.
Antes que a sua sombra desapareça
com a sombra da última árvore
corroída pelos poluentes que infestam o ar,
o último ecologista grava o seu canto
como declaração de amor à cidade inviável
e definha como o rouxinol que se mata pela rosa.

dezembro/81


***

INFÂNCIA REENCONTRADA NUM TEXTO DE JOSÉ CARLOS OLIVEIRA

Quem tem seis anos de idade em maio
acredita que nunca mais se queixará da vida.
Já se foram os dias de amargura,
a morte do pai deixou de ser
um ferimento persistente.
Subimos escadarias,
descemos ladeiras,
atravessamos becos
onde os sapateiros estão batendo meia sola
com os pregos fincados nos dentes.
Os navios ancorados
falam de viagens aos confins
da experiência humana.
O relógio da praça marca hora nenhuma,
a hora da infância entregue às suas fantasias.
No alto dos outeiros
há brancas igrejas escoltadas por palmeiras imperiais.
Toda quinta-feira
às dez da manhã,
um anjo invisível varre as nuvens do céu.
O menino passeia.
Assim como foi feito,
exposto à tempestade mas também à bonança
sabe dar o devido valor
ao barulho da chuva nas calhas.
Apanha uma folha de fícus,
dobrando-a como um funil
faz a mágica de um assovio.
Quem tem seis anos de idade em maio
acredita que nunca se queixará da vida.

***

NOTÍCIA DE JORNAL

Como bólidos
carros passavam pela rua.
Apitos,
vozes alteradas,
gritos assustados.
Uma pequena multidão
se ajunta na praça.
O primeiro
estava caído de bruços,
a boca aberta no chão.
Os outros dois seguiram
para o hospital,
mas sem esperanças.
(Aquele fardo abandonado
numa poça de sangue,
com o rosto disforme
de boca contra o chão,
tinha sido um rapaz alegre
e seus olhos eram azuis —
disse uma senhora gorda,
com a voz soluçando).
De tão denso,
o silêncio podia
ser cortado com uma faca.


***

EQUILIBRISTA

O bêbado, em malabarismo
feliz, na linha de giz,
dá um show de equilibrismo.



***

VOO

No voo, em viagem,
a nave no espaço é ave
que busca vertigem?

***

ANZOL

Na água calma some
a isca. Nenhum peixe arrisca
matar a minha fome.

***

RELÓGIO

Que repete o compassado
relógio? O necrológio
do morto tempo passado.

***




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