quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Luís Carlos Guimarães - As Cores do Dia


No seu segundo livro de poemas, As Cores do Dia, Luís Carlos Guimarães  mostra-se resolutamente maduro em sua poética.

Os poemas presentes no livro são enxutos, de modo cabralino, com conteúdo bastante substancial e direto, sem utilizar-se de narrativas baratas para aumentar a largura dos poemas. Falam de coisas complexas e simples, como a figura da palavra, do rio, do quarto, do dia, destrinchando a significância dos signos, destilando-os até ficarem irretocáveis.


***




A PALAVRA

Explicita, impressa ou
manuscrita, a palavra
se destaca, inteiriça,
ao olho inquisidor.

Visual (a imagem
esculpida no papel,
peso e contorno
de vogais e consoantes

entrançadas), de-
fine sua exata ou
imprecisa anatomia,
destila seu mel

e consome sua luz.
De agudo sal, ácida,
deixa vestígio na boca.
Por ambígua, tem gume

dúplice, espelha
quem a vê. Múltipla,
forja as cores do dia
e as vísceras da noite.

Pela dureza do metal
percute nos tímpanos,
estilhaço de vidro.
Tanto pode ser:

flor de estufa,
fartum corrosivo.
Gema polida, de ga-
rimpo subterrâneo,

acerada pelo fogo.
Poço ou túnel sem
saída, ilha sub-
mersa, o estupor.

Tapume da lua,
ostra na concha
amordaçada, miasma
de paul, azedume

de mosto, mas que
lume transparente?
Nódoa no sol, pro-
jétil no tambor

da arma, que
fere o alvo se
a disparam com
mira certeira.


***

O RIO

O rio se nutre
de nuvens. Da
nascente à foz
sulca o pulso da

terra, semovente.
Músculo tenso, a
correnteza tem a
força compacta

de um punho. Fle-
xível, o corpo
líquido (cobra
coleando na areia

ou tapete que
se desenrola )
navega o leito
contido nas mar-

gens, suas amarras.
Intumescido pelas
chuvas transpira
nas várzeas, ferti-

lizante. Contraído,
flecha a garganta,
e galgo no salto
vai à caça, tocaia

o mar desde as
cabeceiras. Nas
gamboas, despo-
jado das vestes

curte a pele ao sol,
nu. À sua passagem
o verde se levanta,
os mangues fermentam

na lama. O negro óleo
das águas redondas
fecunda cidades, no
abraço das pontes.

Surdas pancadas de
remos arrepiam-lhe
o dorso. Horizonte
de mastros e luzernas
— a fera domada,
sem garras, as crinas
eriçadas no galope,
desagua no poema.

***

O QUARTO

O quarto, o inverso
da joia, resplande-
ce por dentro, fruto
sob a casca, encerra-
do entre as paredes.
O dia explode pelas
frestas, flamejante:
delimita sua extensão
e profundidade. Não é
uma peça inconsútil, a
janela vigia — pálpebra
fechada ou olho aber-

to — mirante. Íntimo,
arredonda as formas,
sem arestas. O teto
de estuque, céu bai-

xo com uma luz
no centro, estrela
solidária. Acolhe
o sono e a palavra

do homem, sem eco.
A noite no quarto
é maciça, submarina;
tem peso e espessura,

e não caminha. Mas
basta o ato, o tato
farejante, a lâmpa-
da acesa, o pasmo,

o alarde, o grito.
Não é como barco os-
cilante, sem raízes.
Fixo, como a árvore

se alicerça ao chão,
duradouro. Carnal,
atordoa o ventre
encoberto, a nudez

sob as vestes. Não se
entrega a quem está
de fora: abrir a porta e
entrar é possuí-lo.

***

O DIA

O dia, a venda
ainda nos olhos,
escava fendas
na couraça, madruga.

Rompe o cerco
da noite, em ondas se
espraia, rastejante.
Sanguíneo, mancha

o ar, embebe as
nuvens de vinho.
Agachado, pênsil,
move-se na clareira

como bicho sem
vértebras: o faro
arma o salto sobre
a presa, sem falhas.

Rapinante, afia
o gume no vime
das malhas; no
saque ara brilhos

de espelho polido;
desfruta o lume do
levante, seu nume.
Na vertigem cia queda,

o fulvo fruto em
chamas golpeia
 com fragor os
tambores da manhã.


***

A CASA

I

O olho, à distância, vê a casa:
apenas olha, não a investiga.
Assim como se olhasse, de relance,
uma fotografia. A casa, na lonjura,
conserva o sigilo intacto
e, esquiva, não se deixa
violentar. Severa, não se reparte,
encravada no chão, mineral,
casa antiga, colonial.

II

Na casa antiga
o pensamento
aguça o olhar
e a descobre

em profundidade,
com suas raízes.
De fora, a casa se
apresenta estranha:

entrando, não me
pertenço, integro
sua intimidade,
a convivência

de seus mortos. A casa
tem longos corredores,
canais afluentes
de salas e quartos,

onde, sonâmbulo,
o tempo corrói piso,
paredes e teto,
neutro e geral.

***

GALO LIBERTO DE CRÔNICA DE NEWTON NAVARRO

O galo,
no quintal,
penas e canto.
O agudo olhar,
peça de cristal,
mergulhava
nas volutas da crista.
Imóvel,
na invenção da curva
sinuosa,
o flocudo pescoço,
o bico aguçado
no traço arqueado
que a cabeça erguia.
Ave incendiada
em ricos amarelos,
em rubros,
em azuis
de leve fogo
de álcoois
triturados pela chama.
O que se gerava
no movimento contido
do bicho?
— A luz natural
da manhã chuvosa
na seda da plumagem.
Aveleveza,
pluma,
voo pousado
a se librar no espaço,
urdindo o desenho
da tapeçaria.
O leque da asa
afirmaria o voo
a nascer do mistério.
Comprometeria
a manhã o cântico
glorioso?
— O canto o desarmaria
do seu peso,
da armadura
de ave intacta.
O galo,
isento da realeza,
o corpo sangrento
na pedra da mesa,
e a censura do olho.

***

O GALO DA TORRE (IGREJA DE SANTO ANTÔNIO)

Entre o chão e o voo,
por dia e noite, o galo,
empoleirado na torre, só.
Galo sem terreiro, cúmplice
da solidão circundante
dos telhados. Galo fixo,
fundas raízes na torre,
quando na terra o
exato ofício do canto
propiciaria, dono das
fontes da vida; ou morto,
posto à mesa, encerra-
ria o familiar domingo,
alimento em bocas ávidas.
No horizonte da cidade,
incrustado na paisagem,
o galo. Como resiste
assim imóvel e vertical
na vizinhança do azul,
entre nuvens, brisas e aves
(celestes e itinerantes),
com o canto estrangulado
na garganta de metal?

***

O CURRAL

Vacas no curral, sono-
lentas. Leite no ubre,

úbere. Cascos rompem
o ar lustroso de

moscas. Fezes secam
ao sol: estrume.

Vacas, no curral
comum, ruminam.

***

A PAISAGEM

Nuvens e
                        pássaros
celestes.

                        Mastros
                        na tarde
                        calcinada.
                        Barcos oscilantes.

Mar. Além,
a linha do horizonte,              longe.

***

O CACTO

Palma vegetal:
olhemos o cacto
ao natural,
intacto.

Aberto um sulco
na pele,
escorre o suco
da vida,
ferida.

E reverdece
a raiz
de novo cacto
na cicatriz.

***

A IGREJA DO ROSÁRIO

Quem a vê a distância
(de certo recanto natal),
não a concebe terrestre,
no mesmo plano das casas.
Pois construída na altura,
a velha igreja do Rosário
é nave ancorada no ar
— arquitetura de anjos
debruçada sobre o rio.

***

ROMANCE PARA FEDERICO GARCIA LORCA, À MANEIRA DO POETA

I

Em cavalos cor de âmbar
— os cascos batendo o chão
de jacintos e de nardos —
carabineiros passavam
na noite recém-nascida:
punhais fincados na cinta,
os pés firmes nos estribos,
as mãos seguras nas rédeas
e a palma cias baionetas
com seus brilhos acerados
despontando dos fuzis.
Ia entre eles Federico
as mãos atadas em cruz:
voz ferida na garganta,
bagas de suor e sangue
queimando a rota camisa.
Sentia agulhas de frio
na larga fronte morena,
mirava a morte fronteira
entre noite e madrugada,
desfraldando os estandartes
em direção à Granada.
Com os olhos bem abertos
e os sentidos alertados
tinha a vida mais de perto
porque sabia o destino
que lhe fora reservado.
Assim via na paisagem
acampamentos gitanos
e pela margem da estrada
ouvia pandeiros cavos,
guitarras dilaceradas.

II

Ai, varandas e telhados
cobertos de fina ardósia,
sabor de cerejas rubras,
travo de almíscar e canela.
Ai, os celeiros vazios
de farinha, azeite e pão.
Ai, porque em Fuente Vaqueros
sujas palavras de sombra
fermentaram a delação.
Ai, ginetes fugitivos
pisando pedras desnudas,
as crinas feitas em chamas,
nos olivais acendidos.
Ai, na campina cinzenta
o tênuo canto dos grilos
voando alto com a brisa.
Ai, que as tardes da memória
recendem a mirto e laranja.
Ai, os corações de púrpura
das romãs desabrocha.
Ai, Ignácio Sanchez Mejias,
vísceras cheias de sol,
morto na arena sangrenta
de sua última tourada.
Ai, os colares de flores
e as espigas amarelas,
entrelaçadas no vale
com eriçadas urtigas.
Ai, luar vivo no prado,
em copa de limões verdes,
pelos caminhos bordados
de amapolas e açucenas.
Ai, as fogueiras nutridas
de juncos e cedros secos,
devorando povoados
com suas línguas ardentes.
Ai, Espanha de Albaysin,
Puerta Real, Sacro Monte,
Alhambra, Sierra Nevada
e de Fuente de Avellano.
Ai, que a Espanha tem fome
de liberdade e de paz.

III

A noite findou sua ronda.
Na alva acendendo a colina
um galo no horizonte
arremessou o seu canto
de cristal estilhaçado.
O perfil contra o luar
fenecido em céu distante,
não dizia de seu rosto
de uma estranha palidez,
mas a aurora caminhante
iluminando-lhe a face,
estampava a confiança
que germinará semente
a ser plantada na vala
com o sangue e a esperança.
Garcia Lorca era o alvo
do pelotão já formado
com armas postas ao ombro.
A venda que lhe puseram
não empanou a visão:
sem calafrio de medo
encarou a morte amarga
vomitando suas balas,
raiando estrelas de sangue
no seu peito de andaluz.
Ai, poeta martirizado
na serena Andaluzia
enlutada por irmãos.
Torsal com medalha de ouro,
lembranças de sua mãe,
feitos moedas pagaram
o acre vinho da morte
e desde então as papoulas
mais vermelhas do que são
vêm do coração de terra
do seu corpo sepultado
pelos campos de Granada.


***

O PAI

Neste outubro,
aos sessenta anos,
vais de encontro à vida.
De pé,
frente à serra,
na tua manhã,
o olhar ampliado
pelas lentes,
consultas o horizonte
com a sabedoria
herdada dos teus antepassados
que aprenderam
com a terra,
e mortos,
agora,
são
velhas árvores,
barcos,
homens,
renovados
pelo incessante movimento
da vida.
Lúcido,
profetizas
somente invernos
— verde nos campos,
vazantes fecundadas
pela água primeva
da criação —
pois não nasceste
sob o signo amargo
das catástrofes.
A fugitiva cabeleira
alargou tua fronte,
tua magreza atual
esculpi
um rosto anguloso,
severo,
patriarcal.
Tua sábia
mão
lavrou chão,
manejou arado
e enxada,
colheu maduras
espigas cor do sol
e o branco algodão,
construiu açudes,
amansou violência
de correntezas,
apascentou ovelhas
e bois
na campina,
no claro da manhã,
à sombra da tarde
repartiu pão
e sonho
com teus filhos,
escreveu em grandes
livros
escrituras,
contratos,
inventários,
na tua dúplice profissão
de fazendeiro
e escrivão.
Ah tuas mãos
companheiras das minhas,
atravessadas
pelo tempo
em vincos profundos,
marcadas pelas linhas
da vida
e da morte,
generosas,
abertas sempre
para o ofício
da amizade.
A bondade
é tua dádiva
maior.
A água de tua fonte
dessedenta a sede
de todas as bocas.
A tua mesa,
como um justo,
distribuis alimento
a convivas,
apaziguando
fome antiga
e pobres.
O visionário
que és
vai morrer
contigo:
reivindicas
um mundo de pão
e paz
para os homens.
Gravo no poema
teu nome
— João —
limpo,
simples,
bíblico,
que o tempo
não apagará.


                                               Outubro, 65.



***

CANTIGA DO PRIMOGÊNITO

Dorme, meu filho.
Porque infante,
uma estrela guia
o teu sono. Amadurece
o dia nos teus olhos.

Dorme, meu filho.
Que tua paz seja franca,
sem cor de alegoria.
Não a da pomba branca
na campina radioativa.
Não a da rosa envenenada
no estrôncio da madrugada.


***

NAVEGRAMA PARA VALENTINA TERECHKOVA


E(n)     volta
astro    nave
giras    sol
gira
  só                              Valentina
gaivo   ta
               es
                 p     aço
                        azul     girasSOl
                                            VIa     já
                                             É       ter
                                   ValenTI      na
                                             COr   ação
                                                                       mundo


***

Nenhum comentário: