terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Luís Carlos Guimarães - Ponto de Fuga

[capa: Cláudio Sendin]

Em uma entrevista feita por Marize Castro, semanas antes de sua morte, Luís Carlos Guimarães, de modo modesto, definiu Ponto de Fuga (1979), seu terceiro livro, como "um livro razoável". É um livro curtíssimo, com poemas intercalados por desenhos de Dorian Gray Caldas, mas é muito mais do que razoável. Ponto de Fuga é conciso, equilibrado sem deixar de ser ébrio, com poemas de versos longos em sua maioria, mas com versos curtíssimos, como é o caso da seção "Sotão" do livro, não se perdendo em poemas sem contexto, tudo parece estar encaixado no exato lugar que o lirismo pede.


Soa piegas, apesar de um prêmio literário receber seu nome, mas é preciso reavivar , redescobrir e publicar sua obra poética num único volume . "O sal da palavra", antologia que reúne parte de sua obra publicada até 1984, é um livro escasso, sendo encontrado somente com muita paciência e garimpagem nas catacumbas de sebos, e sua produção continuou além disso, com livros como Pauta de passarinho, A lua no espelho, O fruto maduro e seu livro de traduções, 113 traições bem intencionadas. E como disse Nei Leandro de Castro no prefácio do livro: "Mas é preciso que Luís Carlos não tarde em descrever novas estações de sua caminhada poética. Seus três livros ainda não dizem o bastante de um autor tão claro, tão rico de aventuras, como diria o poeta andaluz [Frederico Garcia Lorca] que ele tanto admira."



***

EXERCÍCIO DE SOLIDÃO

O que sou neste fim de tarde?
Esta dor que arde no peito,
eito do arado de palavras que lacera
o campo/coração do homem
só,
que sou
só,
no átimo deste árido momento, na anca ferida
desta hora vã,
ária solitária, canção sem opção, dança sem esperança,
injúria do tempo,
flanco assediado pelo desgosto,
                                                               agosto.
O que sou neste fim de tarde?
O que disse e o que não disse,
o ser não sendo, o ir não indo, o chegar/já/voltando,
o escurecido/murmurante mar, o azul fundido no cinza/negro
da noite, a minha noite redimível,
nível de águas invasoras, rosa decomposta,
espesso equilíbrio no trapézio do viver antípoda.
                                                                              Poda
esta árvore temporã,
                                malsã,
nascida em chão movediço,
                               sem viço,
                               sem raízes,
                            só cicatrizes. Mastigo o trigo da noite.
Uma clarineta esfomeada devora as pétalas da lua:
Nossa Senhora dos Navegantes.
                                                               Abram alas.

***

CANÇÃO URBANA

O que me chama atenção é um homem sozinho numa mesa,
nos seus cinquenta anos bem morridos,
a entornar seu chope silenciosamente,
o homem do paletó cor de goiaba.
Necessariamente funcionário público,
na vizinhança da obesidade e do enfarte,
o homem do paletó cor de goiaba,
tem cinco filhos, três netos,
uma mulher de barriga caída e varizes nos braços e nas pernas,
um apartamento de dois quartos no 12º andar do Edifício Flor das Laranjeiras
(financiado em 25 anos, com correção monetária, pelo BNH),
calos na sola do pé direito,
dentes cariados,
fígado inchado,
acessos semanais de asma brônquica,
uma sogra que encarna o dragão vomitador de fogo,
uma acentuada hipermetropia na visão esquerda
e bolsos furados.
E mais:
no morrer de cada dia,
o homem do paletó cor de goiaba
tem os ouvidos rasgados pelo barulho do trânsito,
seu sangue poluído de asfalto na repartição,
nas filas de ônibus e do INPS.
Entornando silenciosamente o seu chope,
o homem do paletó cor de goiaba
parece um boi.
Um boi.
Não o boi que pasta no campo,
mas o boi que é levado ao matadouro.

***

VÔO

— No alado esquife da aeronave
serei um morto de janeiro?
Eu me pergunto enquanto a ave
de metal atravessa o nevoeiro.

Nas cumeeiras do céu desconfio
do pássaro cego guiado pela mão
do homem. Mas de tenso coração
e dentes mordidos reajo: sorrio.

Há que reagir/sorrir e confiar/fiar,
mais agora que no corredor pressurizado
surge o anjo/aeromoça no chão de ar,
onde seu pão de cada dia é conquistado.

Mas se tiver de ser, que seja de repente
(vejo a morte na altura vestida de azul),
que nesta poltrona de espuma de nylon
não serei covarde e a olharei de frente.

Melhor que ter os olhos cortados por alguém
que deve ser o meu irmão talvez sem nome,
afiando sua navalha no gume da fome,
brilhando na noite o dia de sua lâmina, amém.

Ou ser esmagado pela pontaria certeira
do projétil de quatro rodas na pista,
de pneus de tala larga e volante esportiva,
deflagrado pelo louco menino motorista.

Antes estar suspenso na atmosfera,
envolto na fuselagem desta esfinge
decifrada, pássaro blindado, fera
domesticada a rugir pela laringe.

Mas se sou da terra a ela vou retornar
e caminhar entre os homens na multidão,
e com grandes unhas sujas de sangue ganhar
o pão e cavar como bicho meu último chão.

***

ROMANCE DE ZEGÃO E GENOMISA, Á BEIRA-MAR DE PEDRO NAVA

O Cabaré Radium estava
na Avenida do Comércio,
entre as esquinas das ruas
Espírito Santo e Bahia.
As portas de aço da entrada
davam num salão oculto
a quem passava, passava
por um biombo florido:
a orquestra no recanto
e as mesinhas dispostas
em torno à pista de danças.
o gado da Leonídia,
da Petronilha, da Carmem,
na aba da noite chegava
para noturna pastagem.
Foi numa noite de tangos
na voz de La Soberana
y Soledad del Misterio
(roucas por el viño y
el humo embriagador).
Tangos de corno bravio
a brandir longo punhal,
de sedutor, de volúvel,
flacos, cojos, o ciegos,
padres tísicos, borrachos,
sombras madres paralíticas,
hermanitos jorobados,
de uma jovem doidivanas
e daquela abandonada
que llora, o acepta todo,
o se venga, o se mata.
Nunca mais vou esquecer
que Zegão viu Genomisa
e de pronto enrabichou-se.
Depois da noite de tangos
já saíram os dois juntos
e enlaçados somam um.
Da Avenida do Comércio
dobraram a Rua São Paulo:
lá tinha cama a morena
toda índio, negro e branco,
a perfeição cor de cobre
refletindo este metal
na cabelo mastigado.
No seu quartinho com cheiro
de funcho e de alfazema,
Genomisa perguntou:
Você veio para estar?
Ou veio para ficar?
A resposta foi acesa:
Vam’estar. Depois a gente
vê se é para ficar.
A nudez magra do moço
espichou-se sobre a cama.
Ela foi à prateleira,
virou de costas as imagens
de São Jorge, de São Roque,
da Virgem e São Jerônimo,
de São Cosme e Damião.
Apagou a luz do teto,
só deixou acesa a lâmpada
vermelha da cabeceira.
Vestiu seu chambre sumiu
lá pros fundos do bordel.
Voltou lavada molhada
cheirando (que cheiro de
sabonete e dentifrício!)
Jogando fora o roupão,
com uma toalha de rosto
enxugou bem os sovacos,
o pente, a cabeleira
e se deito com o Zegão.
Luziam na boca escura
rosados clarões de dente,
cintilavam as auréolas
bicos pontudos de seios
movendo a respiração.
Sua cor castanha branca
mutou-se na luz vermelha
em cobre, cora, cinábrio,
vermelhão de antimônio.
Deitada, ao longo, de costas,
(as mãos trançadas na nuca),
no verde corpo brilhavam
três manchas de sassafrás:
duas pousadas no alto,
nos axelhos dividido,
a terceira no triângulo,
no riscado da virilha.
Embaixo ficava o vértice
entre coxa ventre coxa.
Genomisa abria a boca,
mostrava a ponta da língua,
ponta cabeça de cobra.
Ah! Que mulher sem-vergonha,
pensava o amigo Zegão,
a mão de sabedoria
emaranhada na moita
seda cerrada macia.
Doía, doçura aguda,
tão seca e ardente que era
como areia nos seus olhos,
tatalar de asa de beija —
flor e flor e borboletas.
Porque bom de montaria
Zegão, Zegão cavalgava,
foi ao céu, foi ao inferno,
até o fim de seus fins,
(palavras de Pedro Nava),
onde o mundo se acabava
em cima daquela dona.

***

DOM QUIXOTE DO MAR
                                                               Para Dorian Gray

Sozinho na madrugada,
vai o Quixote do Mar
no lombo de sua barca.
Da carne magra, curtida
de sol e de maresia,
saltam as veias inchadas
na pele colada aos ossos,
quando a mão endurecida,
no manejo do pontão
fincado no chão de água,
freia a corrida da barca
galopando com o vento.
Com tantas léguas de mar
morando no olhar azul,
seu sonho tem poucos palmos:
boa lavoura de peixes
na barriga do tresmalho,
na ponta de seu anzol.
E quando o mar não ajuda,
sua fome nordestina
ele a divide com Joana
e com seu filho Joaquim.
Os outros três estão mortos,
adubam pedra e capim
nos dez metros de quintal.
Vai voltando para casa
lá na praia da Ridinha,
casa de taipa e de palha,
duas portas e janela
de olho aberto no horizonte,
na Fortaleza dos Reis
Belchior, Gaspar, Baltazar,
na Cidade do Natal
na outra margem do rio
gordo de mangue e siri.
Amansando a montaria
vai furando a noite grossa,
vai voltando para casa
o Dom Quixote do Mar
e nem sabe que a esperança
é não ter morrido hoje,
mas estar vivo amanhã.

***

O NAUFRÁGIO DE STIG DAGERMAN

Apenas não percebemos,
Stig Dagerman,
a ilha depois do naufrágio,
com a selva e seus habitantes.
Assim foi, assim será sempre.
No cio da lembrança,
da última janela da memória
você vê um menino que olha no horizonte
os iates brancos das nuvens da tarde
fugindo dos fios cegos do arco
de um violino feito de neblina.
Ponto de fuga,
numa curva do caminho
ovelhas cinzentas seguiam para o matadouro,
carne pendurada nos ganchos do açougue,
limite da infância e alimento dos homens.
Um veludoso pêssego entre as pernas de uma mulher
acendeu uma fogueira nos seus olhos
e formigas comicharam no sexo.
Os dias arrancados do calendário
e a insônia dos relógios
testemunham a impostura do tempo.
O punho nunca se armou para o soco,
apenas escondia o primeiro S
marcado em fogo na palma da mão
(SOZINHO).
O chapéu ocultava a prematura calvície
e o segundo S costurado na testa
(SOLITÁRIO).
A camisa desbotada
encobria o terceiro S tatuado no peito
(SOLIDÃO).
A vida e seus codinomes:
a fome no outro lado do dia,
os aluguéis atrasados,
o ponto da repartição,
os relatórios devolvidos,
as promoções adiadas,
as meias nem sempre limpas,
os suspensórios demasiadamente curtos,
as consultas aos médicos do corpo
e até aos psiquiatras,
esses falsos afinadores do acordeão da alma,
o colarinho escurecido de suor,
a gravata roída pelas traças,
a lua redundante de tristeza na copa dos edifícios,
o paraíso nos anúncios de acrílico e gás neon,
as unhas sujas de fumo,
o desfalque, a asma, o desamor,
os sapatos acostumados a andar à margem dos caminhos.
Com a faca do medo
e o garfo pontudo da consciência
você rasgou o embrulho da esperança
e com uma passagem de segunda no bolso
embarcou no primeiro cargueiro que zarpava do porto.
Depois do naufrágio, a ilha,
Stig Dagerman.
Assim foi, assim será sempre.
A língua inchada de sede
como um punho cerrado na boca
e o grito cassado na garganta.
A barriga da perna perfurada
como asa manca de ave ferida,
pende em direção à terra
como cordas de sino abandonado.
Cavalo caído na praia,
carniça com poços na carne,
você fede a retratos apodrecidos.
Imprensado entre a parede de cartolina do desespero
e o muro da existência,
você esqueceu o navio encalhado nos recifes
como grande sapo esfolado vivo,
a anca lambida pelas focas.
O olho feliz da ilha,
clic,
fotografia a gosma do derradeiro suspiro
já repartida entre as moscas.

***

Herança

Nos hectares da poesia
que me coube por herança,
colho safra de palavra,
armazeno provisão,
bebo de sede no poço,
como a fome no feijão.
Invento tudo que penso,
sou mago, palhaço e rei.
Tenho tudo que não tenho,
lua no fundo do copo
e o arco-íris na sopa.
De mãos dadas com Carlitos
alimento de pão e mel
os bichos todos do circo.
Pelo sem-fio da tarde
recebo urgente avegrama:
“De longe país ao Sul
vão no caminho do vento
dois passarinhos azuis.
Solicito alpiste e água
na concha de cada mão.”
A noite cobre meu sono
e da serragem do sonho
faço colchão, travesseiro.
Acordo. É ganho ou perda
ter mais um dia a viver?
Com flanela limpo os óculos
(janela dos olhos míopes)
mas não vejo mais poesia,
que sou cada vez mais turvo
diante da vida dura
e do mundo tão escuro.

***
A CASA

Uma casa vista de passagem
— que pode dizer esta casa?
É referência na paisagem
apenas? Ou impressiona
pela agonia das cores
e da fachada sombria?
Nem isso. A casa não fala,
afundou no esquecimento,
não é mais casa alugada,
nem sequer ruga no tempo.
A casa ficou para trás,
sem memória no passado,
exposta à venda, fechada,
velha ferida incicatrizada
na nova arquitetura urbana.
Alguém lembrou esta casa
com seu reboco cariado,
as veias secas, rachadas
na epiderme das paredes,
como pássaro empalhado,
pulmão seco, coração morto.
***
NOTURNO

Toma meu amor
bebe até a última gota o vinho das estrelas
e olha a noite desenrolada no céu
e sente o mar que vomita um cheiro ardido a peixe podre
e vem e vem e deixa que eu assista a mutação dos teus olhos
na cor de mel ouro antigo chá e telha vã
enquanto não chega a hora de amar
desdobrada todos os minutos como pedras arrancadas de um colar
quando minha boca passeia o teu corpo assustado
e meus dedos ciciam aos pelo úmidos do teu sexo
e eu ávido cavalo te cavalgo montaria do meu amor
***
PARTIDA DE XADREZ

A bruma era um afago
de frio na pele da noite.
Sentados em bancos de pedra,
velhinhos jogavam xadrez
sob as amendoeiras.
No tabuleiro da praça,
quantos peões
repetiram a partida
na paisagem de amanhã?
***
AS PITOMBAS
São as doces pitombas,
plebeu e mágico fruto,
que a memória gustativa
não esquece, mesmo sendo
de tão pouco usufruto.
Explorando o peso pluma
na planície da mão aberta,
o olhar/fome de menino
em vê-la aguça o paladar.
Depois segue-se o ritual
de prova-las, uma a uma:
presas entre o polegar,
o médio e o indicador,
expõem ao contato labial
a suave aspereza da casca:
a veste a se desnudar.
Dentro da boca excitada,
sob o céu palatino,
o dente não mordente,
acariciante, sem dor,
despe o vegetal vestido.
De saliva hidratada,
ágil, a língua tátil sente
a polpa verniz acre-doce:
o adulto, voraz e sensual,
degusta-a, outra vez menino.

***

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