[Recorte de fotografia de José Bezerra Gomes, encontrado em um jornal] |
José Bezerra Gomes nasceu no dia 9 de março de 1911, no Sítio Brejuí, Currais Novos (RN). Formou-se na UFMG, em Ciências Jurídicas e Sociais. Publicou os livros: Os Brutos (1938), Porque não se casa, Doutor? (1944), A Porta e o Vento (1974), Antologia Poética (1975), além de ensaios sobre a história de Currais Novos, Ferreira Itajubá e Teatro de João Redondo. Faleceu no dia 25 de maio de 1982, em Natal (RN).
Dele, já publicamos aqui no Poesia Subterrânea, uma seleta de poemas do livro Antologia Poética, seu único livro de poemas. Contudo, um dos nossos editores, Victor H. Azevedo, aventurou-se em hemerotecas, pesquisando sobre a vida e a obra de José Bezerra Gomes por via de jornais e revistas, e acabou por descobrir 7 poemas inéditos, que não constam na Antologia Poética. Victor também descobriu inúmeros fatos sobre o poeta, que ele pretende reunir em uma plaquete, intitulada JBG, a a ser lançada, possivelmente ainda este ano.
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Doralice, a
multiplice...
A música não é
porque não estão tocando...
O artista também
não porque não estão pintando...
— É Doralice, a
inúmera,
saindo das chamas
do fogo,
cavalgando nas
ondas do mar...
A noiva não é
porque não estão bordando...
O recém-nascido
também não porque não estão chorando...
— É Doralice, a
multiplicada, vestida na minha sombra.
***
DA MINHA TERRA EU
TAMBÉM CONTO...
(poema bissexto de
José Bezerra Gomes)
(Para Hélio
Galvão)
Na minha terra tem
vaqueiro derrubador,
cantador e cangaceiro,
chapéu-de-couro,
gurinhém, papamarelo,
Jararaca, Fabião,
Jesuino Brilhante...
— Minha mãe chamava-se Antônia,
— meu avô chama-se João,
— meu pai chama-se Vicente,
— eu me chamo Fabião...
Na minha terra tem
algodão,
feijão verde,
milho-assado,
crôa-de-frade,
pau-de-espinho...
— Os espinhos do sertão
— trago todos na memória,
— Mandacaru, xiquexiquei,
— macambira, palmatória...
Na minha terra tem
tutano-de-boi,
panelada, jerimum
com leite...
Chouriço-de-porco,
mel-de-abelha...
— Xiquexique é pau-de-espinho,
— imburana é pau-de-abeia,
— rosário de besta é canga
— paletó de nêgo é peia...
Na minha terra tem
braco, tem mulato,
tem caboclo,
negro-cativo,
moça donzela,
senhora dona...
— perna de nêgo é cambito,
— peito de nêgo é estambo,
— barriga de nêgo é pote,
— roupa de nêgo é mulambo...
Na minha terra tem
graviola,
melancia, maracujá,
imbú maduro,
quixaba doce...
— Dá milho, feijão,
— tem fruta, tem cana,
— melão e banana,
— arroz, algodão...
Na minha terra tem queijo-fresco,
cuscuz-de-milho,
carne-de-sol,
canjica quente,
manteiga-da-terra...
— Com vinte dias de chuva,
— logo após a vaquejada,
— chega a fartura do leite,
— manteiga, queijo e coalhada!
Na minha terra tem
cigano-do-Egito,
curandeiro,
benzedor,
matador-de-onça,
mestre professor...
— Um bê com a bê-a-bá,
— um bê com é bê-é-bé,
— um bê com i bê-i-bi,
— um bê com ó bê-ó-bó...
Na minha terra tem
concriz, sangue-de-boi, ribaçã,
galo-de-campina,
beija flor,
maracanã,
papagaio-falador...
— No sertão é belo ver,
— a seriema cantar,
— a onça roncar na serra,
— a arara gritar no ar...
Na minha terra tem
adivinhação,
história-de-Trancoso,
desafio...
— Mandou dizer
el-rei nosso senhor
que vossa
excelência contasse outra...
***
Espelho das Cinco
Faces
Minha avó
mãos caducas
cabelos brancos
cercada de netos
os filhos
abençoando...
Minha infância
fitas de Tom Mix
medo das almas
bancos escolares
lições decoradas...
Minha terra
fogueiras acesas
milho assado
fogos do ar
Senhor São João...
Minha riqueza
notas de maço de
cigarro
a meninice correndo
nua
pátio em roda do
Brejuí
meu cavalo de pau
galopando
Minha primeira
namorada
mãos frias faces
coradas
coração batendo
olhares furtados
***
Meninice
Minha primeira arma
branca
foi uma rucega...
Menino
desadorado...
E meu maior
desejo
era ser
cangaceiro...
Zé Moleque...
Jesuíno
Brilhante...
Capitão Antonio
Silvino...
***
Balada do homem
podre ressuscitado
Estendo-me nos
braços
Sou Ele... Sou
Ele...
Deploro
ressuscitado
o filho anjo
desprotegido
morto insepulto
pagão.
Choro ressuscitado
filha esquelética
desnaturada
órfã de pai vivo
nos braços da mãe
viúva...
Covarde... Covarde...
Tenho sede
sede de sede
sede do próprio
sangue...
Meu santo
São Sebastião...
Sou Ele... Sou
Vós...
Bêbedo rindo
chorando...
Currais Novos, maio de
1950
***
Nem tudo
foi
sem eles
***
Meditação para evocação da cidade
multiplicada
Quando meus olhos
encantados
Contemplarem
a cidade
multiplicada,
Apontai-me todos
A rua em que guardei minha infância.
A casa
singela
solidária
olhando para a Praça Cristo Rei.
Sede por mim,
quanto por ela mesma,
a cidade toda multiplicada.
Facultai-me o dia
amanhecendo
para a beleza
da luz do sol
vivificando o mais obscuro batente
da cidade multiplicada.
Deferi-me o silêncio da noite
enluarada
revelando-me a imagem infinita
da sombra da torre da Igreja Matriz
de Nossa Senhora Sant'Ana
glorificando o patrimônio do tesouro
eclesiástico
da cidade multiplicada.
Sede por mim mesmo, uno,
E por ela mesma, única,
A cidade de Currais Novos.