sábado, 9 de novembro de 2019

ACTA DIURNA, de Câmara Cascudo, sobre o livro de estréia de Antonio Pinto de Medeiros, Um Poeta A Tôa



Um dos nossos editores, Victor H. Azevedo, regressando a sua pesquisa sobre Antonio Pinto de Medeiros, acabou por encontrar essa pérola numa edição do Jornal «Diário de Natal»: Uma resenha escrita por Câmara Cascudo, sobre o livro "Um Poeta à Toa", de Antonio Pinto de Medeiros. Considerando isso um achado, resolvemos postar o texto aqui

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Termino UM POETA À TOA, de Antonio Pinto de Medeiros e a impressão é de ter acompanhado um Poeta através de um mundo estranho, iluminado pelas luzes rápidas de pensamentos que não tomam forma audível e sensível aos órgãos normais de percepção humana. É como uma imensa cidade adormecida ou morta, com as casas luminosas e vazias, as ruas cheias de homens, de carros, de soldados, de mulheres, de crianças, parados, fixos, conservando a posição em que foram fulminados pelo cataclisma.

Nada falta de beleza e de perfeição verbal, as joias da precisão vocabular, a originalidade da visão, a clareza preciosa da forma, a força nova, elástica, magnética de uma vida intensa, poderosa, mas cheia de mistério, de recato, de expressões reticenciais que ardem como brasas.

Nada ilude mais que essa linguagem hermética, coleante, feiticeira mas intraduzível aos ouvidos fáceis de qualquer leitor. Lembra canções húngaras, lentas, langues, ondulantes no ar como um dorso de serpente baudelaireana, ensopadas de melodia que se filtra na memória mas guardando o segredo de sua intimidade. Aquela música decorre em linha paralela ao nosso entendimento, mas não a nossa emoção. A compreensão gramatical é um primitivismo para mais de cem escolas literárias.

A ilusão dura até que a primeira palavra iluminadora apareça. Se alguém quiser percorrer a cidade imóvel sem a curiosidade perquiridora, bastará a musicalidade das frases para o encanto auditivo e para a sugestão criadora do pensamento individual, dogma de meio século para hoje.

Se o leitor atender ao apelo para a vida interna do poema à vida interior e rebelada, convulsa e tempestuosa, então sentirá o milagre coletivo de uma cidade ressuscitada. O movimento encherá as ruas, o ritmo desdobra-se-á em cambiantes infinitos, a multidão retomará passo, gesto e cadência, e todos os rumores da vida organizada em colmeia humana alargarão as ruas e as praças na sonoridade festiva da existência diária. O vento voltará a sacudir os estandartes parados e a espalhar pelo ar perfumes de flor e sons de clarins despertos para a vida e para a luta.

Termino a leitura de UM POETA À TOA com a surpresa de uma entidade intelectual cheia de palpitante ansiedade, percutindo todos os problemas, batendo com a mão impaciente na face dos mármores e dos bronzes perguntando inquieto: — PERCHÉ NON PARLI?

Um poeta à toa não é um poeta sem rumo e sem direção. Toa é a corda que prende um barco a outro para levá-lo contra a corrente, vencendo vento e maré. Que toa arrasta o Poeta para as aventuras do mar alto? Nenhum deixará de cumprir a fatalidade etimológica do próprio título. Poeta, "pociein", fazer, realizar. Os poemas que li são esses primeiros golpes, cortando a onda violenta. Esse é um dos livros mais intensos, de vida mais forte, de densidade mais impressionante de sua geração e momento brasileiro. Sente-se o impulso irresistível sacudindo o Poeta como uma aura impetuosa de mediunidade, gravando um diálogo trágico de sombras e relâmpagos, num céu convulso de tempestade. Qualquer dedução pessoal é apenas uma simples referência. O essencial é aproximar-se e viver com o Poeta os segredos que a iniciação revelará no plano dos sonhos e dos apocalipses. Não julgueis... mas antes, como seguindo o conselho de Santo Agostinho, TILLE LEGE, toma e lê...


Um comentário:

Anônimo disse...

"Toa é a corda que prende um barco a outro para levá-lo contra a corrente, vencendo vento e maré. Que toa arrasta o Poeta para as aventuras do mar alto?"