quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Avelino de Araujo - Livro de Sonetos


Capa: Avelino de Araujo

O Livro de Sonetos (Edição do Autor, 1994, Natal-RN), reúne trabalhos de 1984 até o ano de sua publicação e é tido como o único livro do mundo constituído exclusivamente por sonetos visuais.  

São 24 poemas marcados pela experimentação e subversão da estrutura do soneto. Um exemplo disso pode ser verificado no " SONETO AMÉRICA LATINA", no qual a inversão da ordem usual ("quartetos"/"tercetos") está relacionada com a representação do garfo, sugerindo uma leitura do papel de “alimento” que a América Latina desempenha no mundo, assim como outras “periferias globais”.

O poeta também desconstrói o conceito da forma fixa, brincando com objetos do cotidiano: alfabeto, símbolos matemáticos, símbolos de pontuação, etc. Ele se utiliza de todas essas ferramentas para lembrar da vastidão da poesia e, por isso, em sua visão, da impossibilidade de aprisioná-la em moldes impostos que têm por objetivo, também, o caráter de "regra imutável".
O livro é um protesto que repensa o lugar da poesia e, nesse contexto, o poeta rompe as barreias ideológicas de um 'Apartheid' literário e se coloca como o último e destoante elemento do poema "ANTÍPODAS".

SONETO AMÉRICA LATINA

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APARTHEID SONETO

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SONETO Nº7

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SONETO COTIDIANO

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ANTÍPODAS

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SONETO Nº19

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SONETO INACABADO




terça-feira, 29 de novembro de 2016

Bosco Lopes - Corpo de Pedra







Bosco Lopes nasceu em Natal, em Novembro de 1949. Participou do Poema-Processo, tendo realizado exposições em João Pessoa, Natal e Recife. Sua obra publicada é constituída por: Projeto Zero ( Fundação José Augusto, 1973), Anti-Projeto ( Edição do Autor, 1973) e Corpo de Pedra ( 1ª ed. Edições Clima, 1987 e 2ª ed. pela Edufrn, 2007.) Faleceu em 1996, na capital potiguar, onde virou nome de uma rua no bairro de Ponta Negra.




RIO GRANDE



RIO GRANDE          DA MORTE
RIO GRANDE         SEM SORTE
RIO GRANDE         SEM SORTE
RIO GRANDE         SEM FORTE
RIO GRANDE           DO NORTE

RIO PEQUENO         DO NORTE
RIO FINITO              DO CORTE
RIO SECO                 DE SORTE
RIO GRANDE           DO NORTE

RIO SEM CAIS       SEM PORTO
RIO VOCÊ JÁ          FOI MORTO
RIO DE LEITO                TORTO

RIO CHORANDO        DE FOME
RIO TRISTE             SEM FOME
RIO CANSADO         QUE SOME


***


POEMA PARA PABLO NERUDA



                   NERUDA
                            SUL
                             DA
                 AMÉRICA
                             DO
                            SUL
                   NERUDA
                            SOL
                             DA
                 AMÉRICA
                             DO
                            SUL
                   NERUDA
                           SIM
                             DA
                 AMÉRICA
                             DO
                          NÃO
                            SUL


***


POEMA DOS ANÚNCIOS PAGOS

ALUGA-SE
confortáveis
carros lunares
para um passeio
na lua em seu
fim de semana
no mar da tranquilidade
os interessados devem
procurar a locadora
NEIL ARMSTRONG

VENDE-SE
casa grande
localizada no
planeta marte
com vista que dá
pra terra
procurar a locadora
APOLLO

COMPRA-SE
mulher de corpo
não muito consumido
de olhos verdes e
pele morena
e que esteja disposta
a suportar vida de bandido
procurar o
pobre consumidor qualquer

PROCURA-SE
um pouco de esperança perdida
ontem por uma volta por volta
da madrugada nas imediações
da praça da paz eterna
pede-se a quem encontrou
por gentileza devolver
à moça sonhadora
e
pecadora
da rua da soledade
sem número

OPERÁRIO
OPERADO

da queda da construção
agradece
a São Francisco de Assis
a graça alcançada

***




segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Moacy Cirne - Rio Vermelho: tudo deságua na origem

Capa: Marcelo Mariz

Rio Vermelho (Fundação José Augusto/Departamento Estadual de Imprensa, Natal - RN, 1998) é um canal ficcional, pelo qual escorrem os três grandes rios ( Seridó, Potengi e Carioca), pertencentes à geografia afetiva, do também estudioso de quadrinhos, que desembocam diretamente no Itans, açude pertencente ao município de Caicó-RN, representando, nesse contexto, a própria poética do autor, um inicio de vivências e a finalização delas. E, por que não pensar nesse açude como uma departamento da memória daquele que, em sua obra, sempre enaltece suas raízes e junta a elas as novas aquisições (natalenses e fluminenses)? É tudo isso e mais um pouco.


É uma mistura, um sumo e ele nos refresca, ao longo do livro, com um tom descontraído, na maioria das vezes, regando a nossa fuga da aridez dos dias que não respeitam fronteiras, mas também é um lembrete de que "as fugas" não silenciam os gritos dos lugares que nos habitam. Dessa forma, os delírios com Ava Gardner num "calor dos seiscentos mil diabos" ou o "Cinema Pax" podem ser evocados num bar da Lapa, ou no Beco da Lama, em Natal. O certo mesmo é que esses lugares propícios para "reavivar memórias", nunca deixaram de existir na/(o) Caicó/ Seridó de Moacy. E as peculiaridades e semelhanças dessa geografia jamais vão se separar daqueles que se permitirem à leitura desse mundo.

Mais sobre Moacy Cirne você pode ver clicando aqui.

***

Poemas do Rio Vermelho (1998)

RIO SERIDÓ


***

Criança,
sol de rachar o quengo de qualquer vivente,
minhas admirações afetivas
multiplicavam-se
em cada sonho em cada viagem
em cada esquina:
Tarzan Capitão Marvel
Flash Gordon Durango Kid
Gracinha Esther Williams
Monsenhor Walfredo Padre Agripino
Carlitos Castilho
Píndaro Pinheiro Telê e Tio Silvino
meu pai meu avô
minha mãe.

***

Em caicó,
mel e rapadura,
apaixonei-me por Ava Gardner
por Brigitte Bardot
por Gilda, a que nunca houve.
Em Caicó,
mel e puxa-puxa,
o mundo e o fluminense nasceram
para mim.
E eu ainda não conhecia Nevers.

***

Um calor dos seiscentos mil diabos
fervia
as minhas fantasias com Ava Gardner.

***

Como seria o sabor
de morango?
seria doce-aurora como o de pinha?
Ou doce-crepúsculo como o de manga?
Sua pele encarnada
ocultaria algum segredo violeta,
algum mistério verde-musgo?
Afinal afinal,
como seria o sabor de morango?

***

Caicó
Caicó
      serra
      serrote
      solidão aridez
e um
     sorvete  de baunilha

***

Colecionei gibis, fotogramas
e estampas
eu
calol. Colecionei
espantos, devaneios e paixões
platônicas.
À distância,
                 a cidade caicó sertão seridÓ
uma história que não acabou
                 para os colecionadores
                 de sonhos
                 ambrosias
                 e chocolates.

***


RIO POTENGI


***

Natal Natal:
um Potengi e seus crepúsculos
dois filmes aos domingos
e todas as mulheres do Argèpe.
Natal Natal:
uma Ribeira e seus jornais
dois livros de Camus
e todas as nereidas de Areia Preta.

***

              aleglórias
              alegorias
da casa de
Sanderson
              navios cochilavam horizontes.
              Dailor
              e Miguel Cirilo
              desenhavam silêncios
              e tangerinas.
              na Ribeira
              Berilo Nei Leandro
              e Newton Navarro
              plantavam poesia
              e pitombas.

***


Como
era
mesmo
o
nome
daquela
                rapariga
que me anoitecia de carnes e espantos?

***

feira cordel sarapetel
bairro cidade novidade
o Alecrim
                pátria
do São Luiz
e
de
José Bezerra Gomes,
                               o poeta
                               que
                               naquele sábado

***

Forte dos Reis Magos
Igreja do galo
beco da Quarentena
que seus heróis
                santos
                putas e bêbados
                orem por nós,
                amém.

***

***




***

RIO CARIOCA

***
***

***

***

***
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Nei Leandro de Castro - A Feira Livre

 
Capa: Cláudio Sendin

 Nei Leandro de Castro nasceu em Caicó - RN, em 1940. Formou-se em Direito, mas dedicou-se à publicidade. Participou do Poema-Processo, desdobramento da poesia concreta lançado simultaneamente em Natal- RN e no Rio de Janeiro, no ano de 1967 com  paralisação 'tática" das atividades em 1972.  Colabora com este movimento executando, dentre outras,  as icônicas produções visuais: " 1822" - 1966 e " Decomposição do Nu"- 1969.
    Em 1968, após longa estadia em Natal, passou a residir na capital fluminense, publicando crônicas no " O Pasquim", sob o pseudônimo de Neil de Castro. Sua poesia é lembrada pela frequente e vibrante carga erótica, inclusive, seu livro " Zona Erógena" recebeu  elogios de Carlos Drummond de Andrade.
     Sua obra passou a ser mais conhecida depois da adaptação para o cinema do seu romance "As Pelejas de Ojuara" (Prêmio UBE - 1987), com o nome de "O Homem que desafiou o Diabo".

     Feira Livre (editora Put'zig, Rio de Janeiro, 1975), traz uma releitura do ambiente que também nomeia o livro, com poemas curtos e simples. O poeta tenta evidenciar novas possibilidades de percepção para os alimentos, às vezes bem-humoradas, marcada por um forte apelo sensorial e antropomorfização dos elementos descritos . Mas o livro vai além e também retrata, em alguns momentos, a crueza que o espaço desperta nas personagens que o compõe.

***

Poemas do Feira Livre (1975) 



O PEIXE

Mortos, natureza morta,
os olhos do peixe
ainda mostram medo.
Uma mulher homicida
lhe espeta o dedo.

***


PEPINO


É de pequeno
que se torce o pepino.
Assim como
a mãe emascula o menino.

***


OVOS


Frios,
profundamente mudos,
os ovos passam pelo poema
e nada mostram.
Salvo casca, clara e gema.

***


JACA


A jaca barroca.
Se fosse mulher,
seria grande
voluptuosa
e de voz rouca.

***


COUVE-FLOR


Seria flor
se não (quando menina)
tivessem injetado em sua carne
fungos de penicilina.

***


OVAS DE PEIXE


Mulheres-objetos
disputam a delícia
destes fetos.

***


LOURO



para Millôr, com base no seu humor.


O destino é desumano
ou não?
Esta folha caiu
da cabeça de um romano
para o feijão.

***


FIM DE FEIRA


No lixo molhado,
o mais novo mendigo
briga de faca
com o mais antigo.
E o mais fraco
morrerá
por um maracujá.

***

Miguel Cirilo - Os Elementos do Caos




Miguel Cirilo nasceu em São José do Seridó, em 1936. Mudou-se para a capital poucos anos depois de nascido. Apreciador de poetas como Frederico Garcia Lorca, Rainer Maria Rilke, T.S. Eliot, Fernando Pessoa e Ezra Pound, além de escritores como Camus, tem em sua escrita uma densidade bastante filosófica, flertando muito com os ideias existencialistas.  Publicou Os Elementos do Caos, via Plano Cultural, em 1964, ficando esgotado por anos, e sendo reeditado, com muita insistência pelos seus amigos e editores, em 2001. Segundo Nelson Patriota, em um artigo, diz que "Miguel Cirilo, após publicar seu bem-avaliado "Os Elementos do Caos", deixou a literatura e embarcou numa viagem de busca existencial que o levou a recorrer lugares e modelos culturais alternativos, mas o impediu de reencontrar o caminho da escritura poética, embora voltasse a ler poesia nos últimos anos de vida.". Migue faleceu no ano de 2004.


***


2.

o corpo branco no chão
não faz esforço.
a luz circula na intimidade.
a nudez é antiga,
o quarto também.
as palavras estão se arrumando
para um novo poema.
as coisas, postas em sossego
repousam de qualquer modo.
anônima é a presença da noite.
os chinelos esperam.
eles não sabem, mas esperam.
—pode alguém exigir mais para dormir?

***

4.

— não a ambígua face
do deus: já tenho quase
com que moldar o morto
à sua própria imagem.

—não em precário espelho,
o outro: me contento
com apenas o modelo
— o que se tem detento.

(o reino é tão de treva
que — só temor e sono,
não sabe o rei que vela,
talvez, o próprio trono)

***

2.

— talvez um dia, um ano, um pouco mais:
uma vez ainda as cosias te circundam;
vais por caminhos (ou palavras) tais
que em vê-los (só de vê-los) se aprofundam

na tua morte os sulcos viajante
de noites saturnais, vais cavalgando
a luz da grande rosa circundante:
seu perfume te basta (desde quando?)

as lâminas cessaram: nos teus pés,
a certeza de morto, do profundo
fê-las brandas. Por isso, porque és
nu e só, deves tudo. — ser-do-mundo

— foi tarde que escolhi, loucura minha,
o seguir-te diuturno, pois a hora
chegou breve de sono: o cão definha
e Deus (a quem amei?) já foi embora.

***

3.

— faltam dois galos vermelhos
para a morte nos unir:
amor que dorme, desperta,
não é hora de dormir

me dá arsênico e rosa:
quero morrer sem sentir.
amor, já se acende a aurora:
ajuda-me a não fugir.

— abraça-me com o desgosto
da vida que não te dei.
— pelo muito que me deste:
não foi só a ti que amei.

entregaste-me uma sombra,
talvez com medo de mim.
— amor, a morte me assombra...
— só posso te amar assim...

***

4.

apenas o instante vela o rei:
nas vigias do corpo há muito sono.
lá fora são os homens e a lei
que os retém sobre as águas. mas, o dono

das manhãs em corridas e caçadas,
na sala exposto, grave, sob incensos,
já não governa mais suas manadas:
sumiram-se em vazio os sóis imensos.

a fora do seu rosto não mudou:
o indeciso da fronte permanece.
a fonte dos seus olhos já secou,
mas a inquietude é sua, ainda, e cresce.

ali onde se erguem os estandartes,
onde o sangue se agita, o inteiro
lutando subsiste contra as partes.
contudo, é já no morto outro guerreiro:

as muralhas mantêm-no simplesmente,
sem defesa, em sítio não sabido.
o seu nome rendeu-se ante o existente:
está só — como Deus — desconhecido.
***

o mito
                                                                              a Federico Fellini

há no cume da noite, inacabado,
um cão. quem já não o viu, descomunal,
ancorado no tempo? assediado,
desdobrar-se, de pronto em luz e cal?

Ó colosso da noite! em vão, quem sonha,
habitante de coisas negro-mortas,
move-se à luz dessa nudez medonha:
o sono já fechou todas as portas.

madrugada, a cidade se desgarra
e se evade para onde é-quase a fera.
agita-se. debalde há algazarra.
solidão. o-que-morre, em vão espera

a presença do vivo. a besta manda
que se abram porções de abismos breves
aos corpos olvidados. a ciranda
afinal se inicia: passos leves.

o falo se derrama sobre o mundo.
mas se perde na busca. ó frustração
dos deuses acabados! infecundo,
não alcança onde há vida, foge em vão.

***

a contradição

DIFÍCIL
quando não vives.

DIFÍCIL
quando descobres
que no seu nome de morto
não cabe o homem.

DIFÍCIL
quando são muitos os mortos
e seu jôgo se resume
num correr atrás do tempo.

DIFÍCIL
quando sangrando
o mundo se consome:
fera ou monge
— o grito sabe a fome.

***

2.

quando vier o esquecimento
( demolição do momento),
a quem doar a canção?

quando a Imagem
(nuvemsemelhança)
acampar seu rebanho na lhanura da tarde

e o Espaço ágil
sequestrado
for menos que lembrança
(sem mais o engano poderoso da Forma),


quem sustentará
o muro silencioso e frágil da
solidão?

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Myriam Coeli - Vivência sobre vivência



Myriam Coeli de Araújo Dantas da Silveira, ou simplesmente Myriam Coeli, nasceu em 19 de novembro de 1926 em Manaus, AM, porém com dois meses de idade veio viver em São José no Mipibu, RN. Coeli foi a primeira mulher a exercer a profissão de jornalista profissional no estado do Rio Grande do Norte, tendo se formado na Espanha, na Escola Oficial de Jornalismo de Madrid.

Publicou alguns livros, como Imagem Virtual (feito em parceria com seu marido Celso da Silveira, em 1961) Cantigas de Amigo (1980), Vivência sobre Vivência (1980), Inventário (1981) e Catarse
(1981).

Em Vivência sobre Vivência, o escritor Luís Carlos Guimarães escreve que "[o livro] demonstra a sobrevivência da poesia nesses tempos automatizados, de deificação do estereótipo, de descrédito da palavra." A poética de Myriam é realmente poderosa, sabe tratar das imagens de modo simples e impactantes, como por exemplo, no poema ODE PARA O HOMEM NOVO:  "Isolado do mundo/ onde é punhal a esperança/ e fraternidade, epitáfio?//", "[...]Inventor de coisas claras/ com o sol na mão;", ou no poema ODE AO BOI: Boi solar,/ rupestre,/ nesta ode investe/ com ternura lúcida/ seu debuxo exato,/ o compasso de seus passos/ e olhar de vidro opaco.[...]", mas também "não se encerra em hermetismos, nem se esquiva à compreensão por mero jogo de vocábulos ou de recurso sonoros.", flertando muito com as palavras de João Cabral de Melo Neto, com o poema que "aprende a apreender as coisas por dentro".

***


ODE AO FOGO

No olho negro do universo
a chaga vermelha de um mundo cresce,
Deus colhe o doloroso transe desse instante
e incandesce o céu.

No átomo cósmico
arde; fecunda
o medo e a solidão.

Mil patas ígneas
fosforescem no ser
e no mistério cavam
semente de dorido ciclo.

Labaredas encrespam
e lambem a eternidade do tempo
e se antecipam na construção
das futuras manhãs.

Fermentam no mistério
as exatas formas dos seres e das coisas
invisíveis nos sêmens transcendentais.
Depois, no estridente silêncio
em contorções de luz
modela-se a vontade do Espírito.

Escravizado recolhe suas bandeiras
e as esconde no âmago da Criação.
Um mundo ígneo forma-se e se ultrapassa
e inaugura o reino.

Surda mão rubra
semeia no tempo invisível incenso e cinzas
e fogoso cavalos incandescentes
pastam os cernes rescaldados.
Domado o guerreiro está
aprisionado em trágicas rosas de noite negra.

***

ODE À ÁGUA

Sobrenada o Espírito a densa massa aquática
embalado de solidão, desígnios e de aflitivas permanências,
na espera inquietante de ver florir as espécies
nos descampados labirintos do caos.

A água explode da convulsão das chuvas
guardada nos torreões das nuvens
e inunda os vales onde acampam os mares, os rios e os lagos.
Um hálito multiplica os gens nas primeiras emanações
da vida.
Um frêmito percorre o móvel corpo fecundado.

Líquido que flui, reflui, dilui
cântico coral de címbalos, tímpanos, trombetas,
trêmulo de violas, violinos, violões;
lamento de sonoros alaúdes caindo,
partindo sons cristais facetados, fascinantes, faiscantes.

Rastejante monstro diluído,
avoluma-se, encrespa-se, enrosca-se,
entre verdes e azuis de entumecidas vísceras,
agressivo nas corredeiras e penhascos,
mas de corpo macio e brando.
Rosa de corola exposta
de diáfanas pétalas.
De tão dado longamente amar
domina pela eternidade.

Sensual fêmea, estendida em meneios sobre alcova polida,
transcende em carrilhão
furtivas e negras e graves e insinuantes vozes.

No puro mineral peixes saltam arcos reluzentes
e retomam o seu reino
com estrépitos de pássaros
domados a cantantes vozes de sereias.

Não é no frescor mais sutil água da água,
— do poço ao cântaro força in-natura —
nem na mais áspera excitação do instante
a glorificação. Mas no cotidiano de se dar
humilde — vida e morte tecendo células finas e transparentes
— dos reservatórios que a dominam,
e das torneira de onde jorra.

Viva, imaculada e selvática, despenhada ou subterrânea,
translúcida nas nuvens, ou renovada nos laboratórios,
dos castelos d’água que não se fartam,
exorciza à emoção líquida
todas as suas bênçãos, todas as suas mortes.

***

ODE AO AR

Orquestral concerto de vidro partido
regido com lâmina brilhante de transparentes sons;
por todos os quadrantes indo e vindo,
subindo e descendo por todos os fusos horários,
é o ar instalado com o sopro do Espírito
e dele, todas as coisas, dependentes.

Imenso órgão, estranhas, estrídulas, esdrúxulas vozes
correm seu corpo de teclas sibilantes
quando falecem silêncios entre formas agitadas.
Pastor de nuvens e arco-íris
apascenta ainda os absurdos construídos com seu sopro
e o seu fluir
(e) leva o Canto
e sufraga vãs alegorias.

Redemoinho de carícias mornas nos dias de verão,
esse amante descompassado espalha
o seu hálito frio na identificação da morte.

O estribilho que emana de seus lábios
fia a lenda para a estrutura dos cristais;
faz e desfaz o eco com sua mão inorgânica.
Em impercebível vibração
sustém o impulso vital
e há acréscimos de beleza em seus gestos
quando equilibra à flor pendente
e, figurativo, lança no espaço
frívolas circunvoluções e o absurdo dos seus símbolos.
De seus músculos desperta uma guitarra
que entrelaça sons e sonhos
para o lúcido instante de toda sua formação.
Desata movimentos
que consomem as velocidades do medo
e os enigmas do amor.
Apressado se entrega a essa volúpia
de mil apelos e enlouquecidos gritos
e, consciente, reconstrói a falsa eternidade

***

ODE À PALAVRA

A palavra trabalha com hábeis mãos.
Dela me sirvo à mesa
com esses poucos gestos que saciam meus segredos.
Por menos que me baste, a ela servindo estou
e lhe ofereço o disfarce da ordem e da compreensão.
Através dela me armo e soletro caminhos incertos
com seus ardis tão certos.
Mas, animal, dela sou presa
e me resumo na proeza
de lhe dar formas libertas
— pois meu ofício é dar à palavra, invenção.

Palavra é abismo, é infinito.
É lirismo e é blasfêmia.
É amor e vômito.
É o fel e a fez.
Antropófaga e artesã. Ave de asa tensa no cobalto.
Queda no duro asfalto.
Cristo que se crucifica nos quatro infinitos cardeais.

Ela inquieta e perturba o equilíbrio de minhas intimidades,
o chão e o âmago, o sonho e a agonia,
a vida que explode, a morte que desafia.
E me convoca para o Sermão da Montanha
que é ato de lirismo,
embora incompleto o inútil gesto.
Com ela eu faço a humilde doação
e o mundo faz sentido e aceitação.

Com os instrumentos do meu grito e do meu silêncio
trabalha revigorada,
para que assim me desculpe, abjeta,
de viver tão memorável gesta.
Fiel é ela que me constrói
tão suave quanto íntima e depurada
e tão áspera e amarga como esponja de fel.
E me sacode para as coisas que consumo e que suspiro,
sustentando o peso de seus signos.

Animal é ela e clama libertação
pois que domando está domada
a esta humana insubmissão.

***

ODE PARA O HOMEM NOVO

Para que homem novo eu canto
a fim de que o mundo existia
com impossíveis palavras
de sonho e lodo,
transfiguradas,
transfiguradas,
e de feitos tão varonis
assinaladas?
Assassinadas.

Para quem este canto fere
como certeiro dardo
quando lançado
por subterrânea angústia
que o peito abra
comum vala
onde se enterra nada?

Que homem bardo assim reside
neste canto
de paraíso deserdado
— o automatizado não feito
em mecânico alvo.

Isolado do mundo
onde é punhal a esperança
e fraternidade, epitáfio?

Para que homem eu canto,
lúdico varonil,
retesados membros
em mundo hostil?
Guerreiro que investe
com iras acesas
e punhais nos dedos
homéricas ações,
contra esses moinhos
que se reconstroem
por sobre os nãos?

Para que homem novo eu canto,
poeta no seu reino
de coisas avessas?
Inventor de coisas claras
com sol na mão;
profeta do instante,
monstro da insubmissão.
Deflagrado átomo
de libertação.
Em vão. Em vão?

Para quem eu canto
estúpida canção,
sem pão,
de lar estranho
e solidão?
Ajustada em erros
e elucubrações;
soletrando
em cada sentença
dura lição,
com metáforas
de amor e perdão?

Para quem meu canto existe:
em plano exposto,
cuspido no rosto,
desnudo e triste,
amargo e só
na multidão;
o que se exibe
em técnicas crucificado,
de cotidianas frustações
asfixiado.
Poluído alvo.

Um novo Cristo
assalariado,
padecendo mortes
por coisas vivas.
Ressuscitado
em seus estigmas.
Transfigurado
em chagas vivas.
Animal que lambe
suas feridas.

***

ODE AO BOI

                                                               A Diógenes da Cunha Lima

Boi solar,
rupestre,
nesta ode investe
com ternura lúcida
seu debuxo exato,
o compasso de seus passo
e olhar de vidro opaco.
Em aladas narinas
cavalga o vento
e inventa
a flauta avena
no cálido tempo.
Seus calcinados dentes
cravam sinais de pastos
florescendo tardo
em sonhos.
O mugir é trompa
de quase humano grito
em campos de sodomas mortas
que o sal amarga,
faz da boca, brasa.
Patas cavam solidão e espaço
— searas que não incensam.

Debaixo do silêncio
o boi agrestino dorme
sob céus de calor e
em incesta terra, viúva na caatinga
clamando verde que não rebenta.
Mas se os olhos abre
é aprendiz da inútil espera
de pastos e águas de rurais antigas.

Seu frágil corpo
embarca ao vento
o diadema de seus chifres,
a curtida pele em varal de ossos.
E a cauda do seu universo tira o ritmo
de supostos remos da taciturna angústia.

Adversário de sua placidez e das coisas que o animam
tão rude e campesino,
o homem,
nas setas de sangue
alongará seu corpo até À mesa
— víscera das coisas vivas
que transforma em holocausto e tabor
para que sinta no estigma da carne viva
carne morta.

Dourado de fatias
jaz seu corpo magro
de azeite untado,
sem memória. Desfigurado.
Assim cumprido,
o bíblico boi divide
sua carne vermelha e solidária
a farsantes e plebeus.
E conserva
o que no homem forma
de circunstancial:
memoráveis feitos
do Bem e do Mal.

***

CANTIGA DOS CATADORES DE LIXO DA CIDADE NOVA

Eis nosso ofício:
catar o lixo.
Restos do rico,
do pobre, ópio.
O seu contato
se contamina,
sabemos não,
mas compra o pão
que nosso estômago
não enche, não.

Com sol e chuva,
as mãos sugando
todos resíduos
do fértil lixo
e seus odores
todos sentidos
com náusea e riso,
a nossa lida
vamos curtindo.

Lixo do lixo
é nosso corpo
tão consumido.
Azinhavrando.
As roupas rotas
escurecendo,
descosturando.
Entre animais,
as suas fomes
com nossas fomes
vão divididas.
E fustigadas.

Bicho com bicho
catamos lixo
e nos fartamos
com seus petiscos.

Nos edifícios
que se colete
muito mais lixo;
e na cidade
se multiplique
mais imundície:
para o sustento
de nossos filhos
que nessa escola
caráter formam
entre detritos.

Se o vendemos
dos negros sacos
que envergamos,
assim ganhamos
nossos cifrões.
Tirar sustento,
alento e sonho,
sofreguidão,
do lixo irmão

Eis nosso ofício:
sulcar o lixo
com nossa mão,
como na terra
sulcar o grão.

Se bendizemos
essa abastança,
nos afogamos
no mar de lixo.
E emergimos
de deus detritos.
Assim lambendo
no suor o osso
do nosso ofício
— detrito e atrito
(pois somos tantos
nem sempre irmãos)
— já somos ricos.

Donos do lixo.

***

ARQUITETURA

No seu covil
de barro e vidro
com os artefatos
mecanizados,
se agita o homem
— o branco enigma
de deus amálgama.
E tem a vida
árvore amarga
frutificada
no corpo e fala.
Se chama acende
de espera e sonho
há insone grito
em suas cavas.
A vida o prende
em suas malhas
de frágeis lãs
— obreira sábia
que a teia tece
com murchas mãos
tácito enleio
de céu no lodo
no instante breve
dentro do nada.

***

DIÁLOGO DA EVIDÊNCIA

— Neste
mundo
vão
tem

Um
vão
para
homem

cão?
 — Só
nãos

para
este
cão.

***

CONCEPÇÃO

                                               Para Jorge de Lima

O silêncio tece dado e espada
confabulados
com muitas causas.
O tempo cresce e forma
substância viva
de átomos agrupados.
Doa a palavra
mil máscaras
e mortes vivas
ao novo ser que se estruturaliza
de nuvem e barro deformado.
Conturbado
— o antônimo autônomo automático.

O verbo falsifica,
multiplica,
complica
e crucifica
a substância viva.

***

ELEGIA A VLADIMIR KOMAROV

A lua é tática
espacial,
acidental.

A lua é ótica
incidental:
poema estático

Da terra azul
sem esperança
além da cápsula.

Tecendo a fábula
por trás da máquina
— o astronauta.

Posto no céu
como num alvo
— o astronauta.

Infausto astro
em holocausto
ao cosmomágico

— o astronauta.
Sem mais mistérios
teceu a fábula

Posto no céu
— o astronauta
é cosmomártir.

Na morte tácita:
geração trágica
do homem massa.

Por trás da máquina,
id da máscara
- o mortonauta.

Orai por ele
posto no céu
fora da cápsula.

***



terça-feira, 22 de novembro de 2016

40 anos de "Falo": um livro revolucionário que permanece no silêncio.

Capa: Afonso Martins


Paulo Augusto é poeta e jornalista, nasceu em Pau dos Ferros - RN a 3 de agosto de 1950. Formado em Jornalismo na UFF de Niterói - RJ. Trabalhou nos jornais O  Fluminense (Niterói/RJ), Última Hora (RJ), Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e dentre outros. Nos anos de chumbo, surgiram alguns periódicos alternativos e, dentro desse contexto, aparece o Lampião da Esquina, primeiro jornal, no Brasil, voltado exclusivamente para o público gay que circulou de 1978 e 1981. O poeta potiguar colaborou com o jornal desde sua fundação, ao lado de nomes como: Glauco Mattoso, Leila Míccolis, João Silvério Trevisan, Caio Fernando Abreu e Aguinaldo Silva. 

Anteriormente ao Lampião, mas já sofrendo as represálias da ditadura militar, Paulo publica o livro "Falo", em 1976, e é considerado uma das primeiras publicações, do país, com poemas exclusivamente homoeróticos. O livro, genial desde a ambiguidade que traz no título, é dedicado a Madame Satã e era vendido corpo a corpo na Lapa.  Os poemas são verdadeiros protestos a favor da causa gay e contra todo tipo de abuso e preconceito. Trazem ainda marcas claramente autobiográficas que nos permitem imaginar como era a vivência daqueles que não temiam ser quem eram, dando a cara à tapa, em busca de dias melhores. Imagine isso numa das cidades mais efervescentes, onde as torturas eram mais que proporcionais à vontade de mudar. 

Em 1982, regressa ao RN, fixando-se em Natal, trabalhando nos principais jornais da cidade, assinando colunas polêmicas e bem-humoradas, porque Pagu, como também é conhecido, mudou de cidade, mas não parou de ser um sonhador. Com certeza uma pessoa muito à frente do seu tempo e, talvez, por isso seja pouco lembrado e até mesmo boicotado em meios acadêmicos e culturais. É uma lástima que  "Falo", seu único livro de poemas, que tem uma segunda edição pelo Sebo Vermelho (2003), permaneça silenciado até hoje, pelo o que representa, pelo período que retrata, pela sua liberdade em experimentar das múltiplas possibilidades da linguagem e, ainda assim, ao lê-lo, percebemos um tom de verdade, próprio de quem escreve o que vive. 

***

AVANT-PREMIÈRE

Não foi medo que senti
quando você imenso
- era a primeira vez –
me rasgou a blusa
inebriado e tonto.

Eu era virgem
como todo mundo um dia foi
mas isto não vem ao caso. Fardos pesados,
no canto do muro, tu e eu.
Vislumbrei à luz murcha da tarde
tua fortaleza pontiaguda
e me recordo: meu coração
recuou.
Mas juntei minhas forças todas
e num relance lembrei-me
que mamãe sempre dizia:

- Homem é para-mulher,
e mulher é para-homem.

***


E NO ENTANTO É PRECISO VIVER

Caminhões continuam saindo
do Nordeste
carregando gente
como gado. E eu choro.
o homem que amo viaja
na carne brasileira,
no sangue latino
- trazendo um punhal.
Às 8 horas da noite
o continente estremece
e o povo não atina
o que fazer com os órgãos
genitais da gente.
E, no entanto, mil crianças
de todos os sexos
acabam de nascer.
Amarro minha fome de amor
fortemente
com os cordões de miséria
da minha cidade.
Boto as tropas na rua.
Temo pelo futuro. Danação.
Você que não sabe o que fazer da vida
pegue-me pela mão
e me carregue para o vazio
do que há-de-vir.
Eu também profundamente
entediado com isto tudo.
E, no entanto, é preciso viver.
As gerações futuras nada têm com isto.

***

ESTATUTO

Ser bicha é ser enquadrado
no inciso C
do parágrafo terceiro
do artigo 24
da lei de segurança inter
nacional.

É ter medo à flor da pele,
é ter a língua ferida,
a boca rubra,
o beijo fácil,
o amor saindo pelos poros.

Ser bicha é um estado de espírito,
de choque, de sítio,
de graça.

Como o artista pinta seu quadro,
como a luz que filtra
a janela do quarto
a lua bojuda no céu.

Ser bicha: ser inspecionado,
é ter revirado o passado
e investigado o medo –
subindo o cheiro saudoso
dos primeiros tempos.

É a polícia, acesa e trêmula
no encalço do baitola
amedrontado.

Ser bicha é ser metade gente,
a outra metade - o povo,
gargalha garganta a dentro

ri e galhofeiro.

É Ter parte com o demônio,
aprendiz de feiticeiro.
É estar entre, no meio, ser meta-de
Outros homens.

***

VAE VICTIS

Sensação de cão sem plumas
a máscara
a farsa - o medo
isto tudo nasceu comigo.
A primeira mentira dita,
a gente se documenta,
se habilita
se exercita - e acaba se acostumando.
A enfermeira é porta-voz.
Oficiosa, a víbora morde, sopra,
e cospe um verbete: Homem!
Meu pai acredita,
minha mãe se deleita
o povo festeja. Bandeiras, discursos,
charutos - bandas de música.
Beberam o mijo do menino
magricela - sem lhe perguntar
sem lhe auscultar - a sina.
Toda festa tem seu preço.

Etiquetado, recebo no berço
a humanidade
me olhando e rindo
um riso que eu não entendo
e que não me larga.

Só não ri o anjo. que me protege
assexuado, a-ético, aéreo,
sobrevoando o meu ser
e dizendo:
- Vai, Paulo, ser gay na vida!
No espaço geográfico do discurso há-sumo.
Nihil obstat.

***

A MULHER QUE MORA EM MIM

A mulher que mora em mim
de noite sacode a saia,
remexe e bebe,
intumescida e apaixonada.
Nas noites que eu não quero
ela me atira nos braços
de homens que eu nunca vi.
Pensa, nostálgica, canta,
e embeleza o rosto
como um girassol.
Anda todas as ruas,
beija todos os homens,
se procura.
Encarcerada em minhalma
faz de mim ofício.
Requebra quando não vejo,
canta quando lamento,
romântica, frenética, bêbada.
Não me infunde medo,
mas só me apavora
quando nas horas graves
do meu dia
quer sair para trottoir.
Feroz, voraz, insana,
quer amar a cidade inteira,
ser anel de toda mão,
chapéu de toda cabeça.
Aprendi a gostar dela
e dos sons arroubos
um pouco demoradamente.
Coexistimos equilibrados,
largos e satisfeitos
a maior parte do tempo.
Há dias que ela alucina:
quando eu durmo ela acorda,
quando canto ela cala,
silencia quando falo.
Me investe,
me explora,
me oprime - mas eu gosto.
Compreendi finalmente
que em mim está vivendo
a síntese crucial do mundo:
aqui os contrários se unem,
poderosa, apaixonada, eterna
e furiosamente.

***

ATENTADO AO PUDOR

Para prender-me
a polícia
por a-tentar
- o pudico e ávido
público
termina por decifrar
a mensagem
dos órgãos de segurança
sexual
e mergulha
sob as cobertas
             comigo.

Deliciosamente infratores
simultaneamente
gozamos
entre relinchos, unhadas,
beijos e coronhadas.

***

FELICIDADE

Procuro a felicidade
como quem cata uma agulha
às quatro horas da tarde
num matagal do arrabalde.

A polícia me vicia.
A-guarda, solícita, me guarda.
E permanece à distância
expectando fuxicos.

Duas mãos que me procuram
liames, cordas, arames,
se perdem - me perdem
no matagal de arrabalde
onde a felicidade
às quatro horas da tarde
é uma agulha
que a polícia aparvalhada cata
sem nunca achar - a gente
sempre perdendo.

O jogo.

***

PETIÇÃO TERRORISTA

Um dia que eu estava quieto
João revelou que me amava.
Incendiei.
Como se um jorro
de napalm me tivesse atingido.
Meu coração, desolada cratera,
vi João. Como uma pluma,
um B-52,
possante, rijo, sobrevoava minhalma.
Fui aos ares.
Desfraldei-me,
a ouvir bandas marciais.
Olhei atento seus olhos,
medi seu porte, senso
e falo:
- João, pense no que diz como se morresse.
A vida eu vejo
como um desdobramento de mortes.
Quero viver todas elas.
Ele me olha, nostálgico.
Seus cílios, arames farpados,
fecham-se comigo dentro.
Eu vejo:
mulheres batendo roupas,
as panelas vazias, um filho
repulsivo no colo,
os cabelo de azinhavre,
os dentes postiços,
a missa aos domingos
e a xepa no final da feira.
- Não, João. Mata-me três vezes,
para lavar tua honra
pois eu te trai - agora,
mesmo antes de dizer
que aceito.

***

RAÇÃO BALANCEADA

Pudibundo, aparatoso,
o homem togado,
convicto e obeso,
absolve o criminoso
de guerra – patriota,
festejando sua indômita
e voraz bravura.
Tem pressa, tamborila,
a voz, rouca, tange:
- O próximo!
As grades rangem,
Rebanhos pastam, aguardam
a vez.
Vadios, prostitutas,
bichas loucas,
estelionatários
que um camburão despejou lá fora.

Fedem

O magistrado ri, balofo,
cego e balança a saia.
Protege a nação
da desregulada
e momentosa dissolução
dos costumes.

Grave e generoso,
grasna: - O próximo!
O código bordeja a corja
- a sala cheia, barganha.
Como reza a lei,
a salvo a tradição fica
de famílias quietas
a gerar mundanas, a
desovar foras-da-lei
inéditos e rechonchudos.

***



***


SYSTEM-ATTICA

Porque sou fresco,
hábil, lépido,
a gerontocracia sente medo,
se arrepia
como um rato.
Cospe leis, editos, atos.
Se agasalha, modorrenta, rouca,
recua
na cadeira de balanço
botando graxa
na dobradiça das pernas.
A tosse, a vista cansada,
a velha despótica me espreita.

Quando exibo meu porte,
meu corte,
me chama de trans
                           viado
me cobra pedágio - a doida
quer me ver casado,
parindo mão-de-obra
para eternizá-la.
Para destruí-la, esterilizo-me.
Minha praxis.
Por puro capricho
me amedronta, me persegue, me degrada.
Nego, renego, faço ouvido mouco.
Se me encontra pela rua
madrugada
quer violentar-me,
ver meus documentos,
me revista e se delicia
apalpando minhas partes,
pensa em coito.
Nego, renego, abomino. 
E ficamos eternamente
nessa cachorrada.

Quer me tributar,
me chupar – foder-me
porque sabe que é maravilhoso,
ser fresco
como um dia de Domingo
ensolarado e pendurado
no varal

***

NA PENSÃO A FLOR DE MINAS

O rapaz do quarto 14
é rebento, 24 anos,
da tradicional família mineira.
Olhou nos meus olhos
um dia
seu pecado feito carne
e viu meus cílios baterem.
Ele estremece,
foge o olhar - mas fala.
Disse-me que tem muito medo.
Nas noites frias de junho
ele atravessa a sala
e demora-se no banheiro.
Passa pela minha porta,
estou no leito,
mas não vejo, sinto.
O chão de táboas me diz
que ele foi para lá
ou que ele está de volta.
Me olha, estremece, tem medo.
Eu gosto de vê-lo assim
e ele me parece
feliz quando meus cílios batem
e descobre no meu olho
seu pecado feito gente.
Ouço tudo que acontece
dentro dele
no quarto 14.
Sua comunicação é na cama,
quando gira, tosse,
contorce seu medo - ela range,
ele ruge, mas não tem coragem.
Deitado, espero, seu pecado,
batendo os cílios e lembrando
a disciplinar Minas Gerais. 
Seu pecado, a vontade, deitado
estou sempre,
esperando que na ida para o banheiro
a cupidez mineira
da família tradicional
permita o medo dele vir
pelo meu quarto
misturar na noite fria de junho
nossas humanidades
no pecado amplo,
fofo,
que deitado estou para isso...

***

NO COMEÇO VOCÊ FOI MAIS GENTE

No começo você foi mais quente.
Entrava batendo a porta
correndo - me entregava as flores
murchas que o trem secou.
Rondava o prato de leite,
bichano, terno, barbudo,
olhava o mundo por mim.

No começo você foi mais gente.
Andava a rua comigo,
o braço apoiado - e eu
podia ainda beijar
teu rosto e saber por que.

No começo você foi eterno.
Parecia feito em sal.
Eu levava os lábios sôfregos
e ungia o teu corpo todo.
Você não se desprendia,
vibrava em mim,
vivia em mim
trepava.

No começo foi somente amor.

***

BALADA PARA MADAME SATÃ

Madame Satã,
acabaram de me contar
que você andou por aqui.
Não forneceram detalhes,
mas eu imagino.

Gostaria de saber de ti:
possuias algum cãozinho,
cativo, para alimentar?
Havia o teu, particular,
que afagavas e, modorrento,
botavas para dormir - cheiroso?...

Sim - madame divina!
eu penso.
Precursora, poderosa,
Lampião do asfalto.
A Lapa tremia contigo,
vibrava, amava contigo,
trepava.

Pelo menos ficou urna certeza:
vão demolir toda a Lapa,
mas teu nome vai ficar,
enorme - suspenso no ar.
Bojudo, grave,
prenhe de emoção e de glória.

Eu agora estou no palco,
Samuai,
que foi o teu viver.
Mas não tenho tua força
de expressão,
a ginga.
Ogum não quis me dar
- ele sabe...
o chapéu de Panamá, a voz,
as noites, o bordel.
Tudo isto era muito teu,
muito nosso.
Gostaria de te cochichar
as últimas que ouvi na Lapa.
O malandro aposentou-se,
Vive agora de welfare state,
a noite agora é outra,
poluída, massiva,
Lasciva, ainda, mas morta.
Levaste um pouco da Lapa,
ou tudo - a Lapa
não é mais aquela.
Trocaram muito de vez,
e a bunda dela agora é kitch,
sucesso, fora de ângulo, démodé
Ficou teu brinco, o charme,
a tônica, a perna no ar,
capoeira e pinga.
As paredes da Lapa, Satã,
são eternas,
e nelas você está definitivamente,
preto, feroz, uma pedra.

***



Marize Castro - Marrons Crepons Marfins & Rito



Marize Castro - poeta, jornalista e editora - nasceu em Natal, em dezembro de 1962. Editou o Jornal Cultural O Galo, da Fundação José Augusto, no período de 1988 até 1990 e a revista Odisséia (CCHLA/UFRN).

Estreou em 1984 com o livro Marrons Crepons Marfins, o qual antecipa um diálogo com Ana Cristina Cesar, poeta que só atualmente vem recebendo uma maior atenção da crítica e do público. Fato que evidencia, desde o início, o comprometimento da natalense em construir sua obra com novas possibilidades. Além disso, esse "primogênito" é um marco no contexto literário norte-rio-grandense, por trazer uma garga sensual livremente e essencialmente feminina, sem pretensão de pedir desculpas por expressá-la - porque não devia e não deve pedi-las. A também editora, surge como um protesto, num ambiente provinciano e residualmente machista. E, também por isso, rompe as barreiras da província e repercute em João Pessoa, Recife e, posteriormente, no Sudeste, após ter sido descoberta por Inácio de Loyola Brandão.


Seu segundo livro, Rito (1993), dá continuidade à busca por novas formas de falar, novos experimentos, aliando à sua voz, desta vez, principalmente ecos de Orides Fontela - poeta que assim como Ana C, só agora vem atraindo uma maior atenção para sua obra - mas também pistas de leituras de Elizabeth Bishop, Emily Dickson, Virginia Woolf (a loba) e Zila Mamede, encontradas nas epígrafes  ou no corpo de alguns poemas. É um livro que traz um quê de andrógino, uma busca pelo simples e pela grandeza do que não compreendemos. Sua poesia é grande, por enxergar a grandeza desses cacos dos cotidianos, muitas vezes interiorizados e ela não esconde os cortes e grita a dor que eles causam, porque não há outra saída. 

Escritoras ou não, Marize é todas elas e por elas/com elas, grita, nesse silêncio que é tão importante e demarcado na sua obra, no cuidado com a síntese que vem a ser uma das suas principais características, como assinalou Haroldo de Campos.

Seus poemas vêm sendo traduzidos por poetas estrangeiros como: Steven White (EUA), Joan Navarro (Espanha), Jesús Sepúlveda (Chile) e Mariano Shifman (Argentina).


Publicou também:

Poesia:

Poço. Festim. Mosaico. (1996).
Esperado Ouro (2005).
Lábios-espelho (2009).
Habitar teu nome (2011).

Diversos:

Se esse humano dos meus gestos (2003).
Rio de Grande Sol (2007).
Além do Nome (2008).
O silencioso exercício de semear bibliotecas (2011)


***

Poemas do Marrons Crepons Marfins (1984)



Capa: Nei Leandro de Castro / Marcelo Mariz



O arco e a lira

                        a Octávio Paz

Com o arco
me armo.
Com a lira
engrandeço.
É sempre noite
quando amanheço.
É sempre fatal
quando te esqueço.

***

Fenecer

Feneço na ausência
dos homens cor de bronze
do prepúcio de púrpura.

Quem me lapidou
esqueceu de me tirar
o veneno.

Ateio
fogo na minha própria
teia.

Como quem preserva fortalezas
corto minhas / alheias
veias.

Feneço, infinitamente
na presença dos homens
que têm grandes pés e nenhuma fé.
Que me rasgam a carne
e me sepultam em suas glandes.

Não fosse
uma pessoa de múltiplos escudos
viveria a vida toda
com um único vestido
de veludo.

***

Entre setas

Nesse lance de dardos
O alvo
       é
       você.
êxtase entre
              setas
olhares
que por si só
traçam
      arestas.
Quantos fios
hei de tecer
antes de em qualquer

alguém
me perder?
Em quantas docas
hei de me esconder
se todas as vértices
me levam sempre
para o mesmo lugar?
Hei de me lançar
em terras
           firmes
ou
me firmar
           em alto
                  mar.
Se nada nem ninguém
encontrar, nem mesmo
                         um naufrágio
                         um segredo
me abandonarei
aos espasmos
de um vibrar
          de dedos.

***

Olhos viram topázio?

À meia luz
não faço dramas
nem hesito.
Leio Pound.
Olhos viram topázio?
Conto até dez
e me emolduro.
À beira-mar
reverencio as feras.
Detenho-me, imersa.
Sofro.
Por que a paixão tem de ser tão cega?


***

Nódoas

Declino
ao mesmo tempo
que o vento.
Empilho
nódoas de sangue
                   e sonho
diante de um perfil
                  exangue.
Todo rio tem sua margem.
Todo alguém tem seu par.
Recolho
grãos de areia
sob  o olhar
                   ávido
das rochas
que já não podem
                 andar.

***

Antonin

Artaud
tal qual você
aqui estou.
Às vezes endiabrada.
Outras, suicida.

***

À margem
                 a Ana C.

Recebi pelo correio
a blusa de seda negra.
Não a vesti.
Espero instruções in loco.
Corto os pulsos
ou me enforco?

***

Provérbio

Em todo poema
              há uma hiena
pronta a rir
              do leitor
              que se atreva
              a fugir
              sem receber
              a senha.

***

Senhoras e Senhores

Peço licença
para dizer
que a libido de vocês
está caduca
que as tesões de vocês
são antropofágicas
engolem todo orgasmo
Senhores não fiquem pasmos
Senhoras não fiquem rubras
Vão para suas casas
lá vocês encontrarão
várias criancinhas "lúdicas"
Marcelo está com gonorreia
Tereza vai abortar
Cecília está amando Silvana
Senhoras me deem licença
para dizer
que ontem vi todas vocês
nuas, durante a sauna
vocês suavam
e pareciam tão flácidas
que me achei uma crápula
ao tocar minha carne rígida
Senhores me deem licença
para dizer que hoje
eu vi todos vocês
marcando encontro
com adolescentes
menores de 18 anos
Senhoras e senhores
perdão
não pretendia aborrecê-los

***

Fotogramas

Um still basta para meu disfarce
ficar completo. Há em mim um voyeur
que assobia pelas madrugadas suspendendo
tesões como se fossem leves agulhas. A 100 Km
por hora faço a última tentativa. Largo o
volante. "Tudo é aconchego árido".
Preciso de um cais, ou palco, para uma
récita face a face. Não me faço de rogada,
não há baile todo dia. A juventude não
passa de uma espaçonave desmentindo
os anos. Vã ousadia.
Fico o espelho. Cético êxtase. Eis minha
fantasia.
Sobreviver ao narciso. Quem há de?

***

   Capa: Afonso Martins


Poemas do "RITO" (1993)


Salgar os pés e unir as mãos. Na vertical.
Numa confissão de ternura.

***

A teus pés
Palavra
nada tudo sou

Acovardo-me
Largo o remo

Sou tua escrava
Sirvo-te do bom e do melhor

Lustro o cálice em que bebes
Resplandeço quando me feres

***

VESTÍGIOS

Resta-me este arrecife.
Vertigem de ostras.
Esconderijo de pérolas.
Resta-me este precipício
sonhado às claras
desmentindo as trevas.
Restam-me esta fábula
e este homem silencioso.
Quase transparente.

***

MILENAR

Jamais retive em minhas mãos
esta dor que agora há
Por muitos anos fui somente sonho
Somente seda
Neons e pérolas
Mulher de penas
Empavonada
Apavorada em cena aberta
Atenta ao azul que há na rosa
Bailando em antigos templos
Entre segredos falsos
e fados raros

***

Devolva-me a cólera, a lanterna mágica,
que transportei comigo enquanto te amei.
Devolva-me a morte, a doença, a saúde,
o caos, o cais, as âncoras, os segredos,
teus ataques me deixaram forte
teus gozos me atingiram a alma
me fizeram odiar o amor.
Devolva-me as fantasias, as árvores sólidas
plantadas à margem de um delicado homem
que caminhava certo para a sabedoria dos pássaros.
Devolva-me o néctar, o túmulo dos milagres,
a liberdade dos escândalos, os bosques, a lei da botânica,
a letargia da não-paixão,
o doce repouso nas águas da noite.

***

HERANÇA


                            para Orides Fontela



agora eu te vejo.

E necessito desta semelhança.
Desta Herança.
E até mesmo desta fúria
que sempre findará

em ternura.

***

SAGRADO


Dos teus bons olhos jorram lendas.

***

AFÃ

Minhas harpas em arpejos
denunciam o meu Desejo.

Delicado rapaz, eu te chamei porque me quero assim.
Dentro de ti.
Sólida.
Expelindo líquidos.

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ESPELHO NOUVELLE VAGUE


Procuro um outono uma margem uma nave um ombro.

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O AMOR

O amor de tão errante
vira lince
e já tem asas
vira ave e já é rápido
oculto
recolhe lanças
agudas lanças
que o homem esconde em chuva santa
tudo é lampejo
iluminação
tudo é dor
excesso
milagre
lágrima
tudo é vinho
e envolve Deus
tudo é claro
e da noite precisa
tudo é breve
longínquo
ruínas da alma
procissões de véus
tesouros de nada
pálpebras que se cerram
fendas que não tardam
quebram
absorvem
e partem
quando é sol
quando é calmo
quase topázio

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Quiseram-me ostra.
E eis-me ostra.

Quiseram-me noite.
E eis-me noite.

Quiseram-me ruína.
E eis-me ruína.

Haverão de querer-me ainda?

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O homem que eu toque
deixará de ser homem.

Será flor, trilho, estrada

ou anjo.

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            (De Lição VI e Lição X, de Geografia III, de Elizabeth Bishop)


Elizabeth sabia o que é a Geografia
o que é a Terra
qual é a forma da Terra
de que está composta a superfície da Terra.

Elizabeth sabia o que é um Mapa
quais são os Pontos Cardeais num Mapa
em qual direção do centro do Mapa
está a Ilha, o Vulcão, o Cabo, a Baía,
o Lago, o Estreito, as Montanhas, o Istmo,
o que há no Este, no Oeste, no Sul, no Norte,
no Noroeste, no Sudeste, no Nordeste, no Sudeste.

Elizabeth virou Folha, Rio, Céu.

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