Myriam Coeli de Araújo Dantas da Silveira, ou simplesmente Myriam Coeli, nasceu em 19 de novembro de 1926 em Manaus, AM, porém com dois meses de idade veio viver em São José no Mipibu, RN. Coeli foi a primeira mulher a exercer a profissão de jornalista profissional no estado do Rio Grande do Norte, tendo se formado na Espanha, na Escola Oficial de Jornalismo de Madrid.
Publicou alguns livros, como Imagem Virtual (feito em parceria com seu marido Celso da Silveira, em 1961) Cantigas de Amigo (1980), Vivência sobre Vivência (1980), Inventário (1981) e Catarse
(1981).
Em Vivência sobre Vivência, o escritor Luís Carlos Guimarães escreve que "[o livro] demonstra a sobrevivência da poesia nesses tempos automatizados, de deificação do estereótipo, de descrédito da palavra." A poética de Myriam é realmente poderosa, sabe tratar das imagens de modo simples e impactantes, como por exemplo, no poema ODE PARA O HOMEM NOVO: "Isolado do mundo/ onde é punhal a esperança/ e fraternidade, epitáfio?//", "[...]Inventor de coisas claras/ com o sol na mão;", ou no poema ODE AO BOI: Boi solar,/ rupestre,/ nesta ode investe/ com ternura lúcida/ seu debuxo exato,/ o compasso de seus passos/ e olhar de vidro opaco.[...]", mas também "não se encerra em hermetismos, nem se esquiva à compreensão por mero jogo de vocábulos ou de recurso sonoros.", flertando muito com as palavras de João Cabral de Melo Neto, com o poema que "aprende a apreender as coisas por dentro".
***
ODE AO FOGO
No olho negro do universo
a chaga vermelha de um mundo cresce,
Deus colhe o doloroso transe desse instante
e incandesce o céu.
No átomo cósmico
arde; fecunda
o medo e a solidão.
Mil patas ígneas
fosforescem no ser
e no mistério cavam
semente de dorido ciclo.
Labaredas encrespam
e lambem a eternidade do tempo
e se antecipam na construção
das futuras manhãs.
Fermentam no mistério
as exatas formas dos seres e das coisas
invisíveis nos sêmens transcendentais.
Depois, no estridente silêncio
em contorções de luz
modela-se a vontade do Espírito.
Escravizado recolhe suas bandeiras
e as esconde no âmago da Criação.
Um mundo ígneo forma-se e se ultrapassa
e inaugura o reino.
Surda mão rubra
semeia no tempo invisível incenso e cinzas
e fogoso cavalos incandescentes
pastam os cernes rescaldados.
Domado o guerreiro está
aprisionado em trágicas rosas de noite negra.
***
ODE À ÁGUA
Sobrenada o Espírito a densa massa aquática
embalado de solidão, desígnios e de aflitivas permanências,
na espera inquietante de ver florir as espécies
nos descampados labirintos do caos.
A água explode da convulsão das chuvas
guardada nos torreões das nuvens
e inunda os vales onde acampam os mares, os rios e os lagos.
Um hálito multiplica os gens nas primeiras emanações
da vida.
Um frêmito percorre o móvel corpo fecundado.
Líquido que flui, reflui, dilui
cântico coral de címbalos, tímpanos, trombetas,
trêmulo de violas, violinos, violões;
lamento de sonoros alaúdes caindo,
partindo sons cristais facetados, fascinantes, faiscantes.
Rastejante monstro diluído,
avoluma-se, encrespa-se, enrosca-se,
entre verdes e azuis de entumecidas vísceras,
agressivo nas corredeiras e penhascos,
mas de corpo macio e brando.
Rosa de corola exposta
de diáfanas pétalas.
De tão dado longamente amar
domina pela eternidade.
Sensual fêmea, estendida em meneios sobre alcova polida,
transcende em carrilhão
furtivas e negras e graves e insinuantes vozes.
No puro mineral peixes saltam arcos reluzentes
e retomam o seu reino
com estrépitos de pássaros
domados a cantantes vozes de sereias.
Não é no frescor mais sutil água da água,
— do poço ao cântaro força in-natura —
nem na mais áspera excitação do instante
a glorificação. Mas no cotidiano de se dar
humilde — vida e morte tecendo células finas e transparentes
— dos reservatórios que a dominam,
e das torneira de onde jorra.
Viva, imaculada e selvática, despenhada ou subterrânea,
translúcida nas nuvens, ou renovada nos laboratórios,
dos castelos d’água que não se fartam,
exorciza à emoção líquida
todas as suas bênçãos, todas as suas mortes.
***
ODE AO AR
Orquestral concerto de vidro partido
regido com lâmina brilhante de transparentes sons;
por todos os quadrantes indo e vindo,
subindo e descendo por todos os fusos horários,
é o ar instalado com o sopro do Espírito
e dele, todas as coisas, dependentes.
Imenso órgão, estranhas, estrídulas, esdrúxulas vozes
correm seu corpo de teclas sibilantes
quando falecem silêncios entre formas agitadas.
Pastor de nuvens e arco-íris
apascenta ainda os absurdos construídos com seu sopro
e o seu fluir
(e) leva o Canto
e sufraga vãs alegorias.
Redemoinho de carícias mornas nos dias de verão,
esse amante descompassado espalha
o seu hálito frio na identificação da morte.
O estribilho que emana de seus lábios
fia a lenda para a estrutura dos cristais;
faz e desfaz o eco com sua mão inorgânica.
Em impercebível vibração
sustém o impulso vital
e há acréscimos de beleza em seus gestos
quando equilibra à flor pendente
e, figurativo, lança no espaço
frívolas circunvoluções e o absurdo dos seus símbolos.
De seus músculos desperta uma guitarra
que entrelaça sons e sonhos
para o lúcido instante de toda sua formação.
Desata movimentos
que consomem as velocidades do medo
e os enigmas do amor.
Apressado se entrega a essa volúpia
de mil apelos e enlouquecidos gritos
e, consciente, reconstrói a falsa eternidade
***
ODE À PALAVRA
A palavra trabalha com hábeis mãos.
Dela me sirvo à mesa
com esses poucos gestos que saciam meus segredos.
Por menos que me baste, a ela servindo estou
e lhe ofereço o disfarce da ordem e da compreensão.
Através dela me armo e soletro caminhos incertos
com seus ardis tão certos.
Mas, animal, dela sou presa
e me resumo na proeza
de lhe dar formas libertas
— pois meu ofício é dar à palavra, invenção.
Palavra é abismo, é infinito.
É lirismo e é blasfêmia.
É amor e vômito.
É o fel e a fez.
Antropófaga e artesã. Ave de asa tensa no cobalto.
Queda no duro asfalto.
Cristo que se crucifica nos quatro infinitos cardeais.
Ela inquieta e perturba o equilíbrio de minhas intimidades,
o chão e o âmago, o sonho e a agonia,
a vida que explode, a morte que desafia.
E me convoca para o Sermão da Montanha
que é ato de lirismo,
embora incompleto o inútil gesto.
Com ela eu faço a humilde doação
e o mundo faz sentido e aceitação.
Com os instrumentos do meu grito e do meu silêncio
trabalha revigorada,
para que assim me desculpe, abjeta,
de viver tão memorável gesta.
Fiel é ela que me constrói
tão suave quanto íntima e depurada
e tão áspera e amarga como esponja de fel.
E me sacode para as coisas que consumo e que suspiro,
sustentando o peso de seus signos.
Animal é ela e clama libertação
pois que domando está domada
a esta humana insubmissão.
***
ODE PARA O HOMEM NOVO
Para que homem novo eu canto
a fim de que o mundo existia
com impossíveis palavras
de sonho e lodo,
transfiguradas,
transfiguradas,
e de feitos tão varonis
assinaladas?
Assassinadas.
Para quem este canto fere
como certeiro dardo
quando lançado
por subterrânea angústia
que o peito abra
comum vala
onde se enterra nada?
Que homem bardo assim reside
neste canto
de paraíso deserdado
— o automatizado não feito
em mecânico alvo.
Isolado do mundo
onde é punhal a esperança
e fraternidade, epitáfio?
Para que homem eu canto,
lúdico varonil,
retesados membros
em mundo hostil?
Guerreiro que investe
com iras acesas
e punhais nos dedos
homéricas ações,
contra esses moinhos
que se reconstroem
por sobre os nãos?
Para que homem novo eu canto,
poeta no seu reino
de coisas avessas?
Inventor de coisas claras
com sol na mão;
profeta do instante,
monstro da insubmissão.
Deflagrado átomo
de libertação.
Em vão. Em vão?
Para quem eu canto
estúpida canção,
sem pão,
de lar estranho
e solidão?
Ajustada em erros
e elucubrações;
soletrando
em cada sentença
dura lição,
com metáforas
de amor e perdão?
Para quem meu canto existe:
em plano exposto,
cuspido no rosto,
desnudo e triste,
amargo e só
na multidão;
o que se exibe
em técnicas crucificado,
de cotidianas frustações
asfixiado.
Poluído alvo.
Um novo Cristo
assalariado,
padecendo mortes
por coisas vivas.
Ressuscitado
em seus estigmas.
Transfigurado
em chagas vivas.
Animal que lambe
suas feridas.
***
ODE AO BOI
A Diógenes da Cunha Lima
Boi solar,
rupestre,
nesta ode investe
com ternura lúcida
seu debuxo exato,
o compasso de seus passo
e olhar de vidro opaco.
Em aladas narinas
cavalga o vento
e inventa
a flauta avena
no cálido tempo.
Seus calcinados dentes
cravam sinais de pastos
florescendo tardo
em sonhos.
O mugir é trompa
de quase humano grito
em campos de sodomas mortas
que o sal amarga,
faz da boca, brasa.
Patas cavam solidão e espaço
— searas que não incensam.
Debaixo do silêncio
o boi agrestino dorme
sob céus de calor e
em incesta terra, viúva na caatinga
clamando verde que não rebenta.
Mas se os olhos abre
é aprendiz da inútil espera
de pastos e águas de rurais antigas.
Seu frágil corpo
embarca ao vento
o diadema de seus chifres,
a curtida pele em varal de ossos.
E a cauda do seu universo tira o ritmo
de supostos remos da taciturna angústia.
Adversário de sua placidez e das coisas que o animam
tão rude e campesino,
o homem,
nas setas de sangue
alongará seu corpo até À mesa
— víscera das coisas vivas
que transforma em holocausto e tabor
para que sinta no estigma da carne viva
carne morta.
Dourado de fatias
jaz seu corpo magro
de azeite untado,
sem memória. Desfigurado.
Assim cumprido,
o bíblico boi divide
sua carne vermelha e solidária
a farsantes e plebeus.
E conserva
o que no homem forma
de circunstancial:
memoráveis feitos
do Bem e do Mal.
***
CANTIGA DOS CATADORES DE LIXO DA CIDADE NOVA
Eis nosso ofício:
catar o lixo.
Restos do rico,
do pobre, ópio.
O seu contato
se contamina,
sabemos não,
mas compra o pão
que nosso estômago
não enche, não.
Com sol e chuva,
as mãos sugando
todos resíduos
do fértil lixo
e seus odores
todos sentidos
com náusea e riso,
a nossa lida
vamos curtindo.
Lixo do lixo
é nosso corpo
tão consumido.
Azinhavrando.
As roupas rotas
escurecendo,
descosturando.
Entre animais,
as suas fomes
com nossas fomes
vão divididas.
E fustigadas.
Bicho com bicho
catamos lixo
e nos fartamos
com seus petiscos.
Nos edifícios
que se colete
muito mais lixo;
e na cidade
se multiplique
mais imundície:
para o sustento
de nossos filhos
que nessa escola
caráter formam
entre detritos.
Se o vendemos
dos negros sacos
que envergamos,
assim ganhamos
nossos cifrões.
Tirar sustento,
alento e sonho,
sofreguidão,
do lixo irmão
Eis nosso ofício:
sulcar o lixo
com nossa mão,
como na terra
sulcar o grão.
Se bendizemos
essa abastança,
nos afogamos
no mar de lixo.
E emergimos
de deus detritos.
Assim lambendo
no suor o osso
do nosso ofício
— detrito e atrito
(pois somos tantos
nem sempre irmãos)
— já somos ricos.
Donos do lixo.
***
ARQUITETURA
No seu covil
de barro e vidro
com os artefatos
mecanizados,
se agita o homem
— o branco enigma
de deus amálgama.
E tem a vida
árvore amarga
frutificada
no corpo e fala.
Se chama acende
de espera e sonho
há insone grito
em suas cavas.
A vida o prende
em suas malhas
de frágeis lãs
— obreira sábia
que a teia tece
com murchas mãos
tácito enleio
de céu no lodo
no instante breve
dentro do nada.
***
DIÁLOGO DA EVIDÊNCIA
— Neste
mundo
vão
tem
Um
vão
para
homem
cão?
— Só
nãos
para
este
cão.
***
CONCEPÇÃO
Para Jorge de Lima
O silêncio tece dado e espada
confabulados
com muitas causas.
O tempo cresce e forma
substância viva
de átomos agrupados.
Doa a palavra
mil máscaras
e mortes vivas
ao novo ser que se estruturaliza
de nuvem e barro deformado.
Conturbado
— o antônimo autônomo automático.
O verbo falsifica,
multiplica,
complica
e crucifica
a substância viva.
***
ELEGIA A VLADIMIR KOMAROV
A lua é tática
espacial,
acidental.
A lua é ótica
incidental:
poema estático
Da terra azul
sem esperança
além da cápsula.
Tecendo a fábula
por trás da máquina
— o astronauta.
Posto no céu
como num alvo
— o astronauta.
Infausto astro
em holocausto
ao cosmomágico
— o astronauta.
Sem mais mistérios
teceu a fábula
Posto no céu
— o astronauta
é cosmomártir.
Na morte tácita:
geração trágica
do homem massa.
Por trás da máquina,
id da máscara
- o mortonauta.
Orai por ele
posto no céu
fora da cápsula.
***