segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Miguel Cirilo - Os Elementos do Caos




Miguel Cirilo nasceu em São José do Seridó, em 1936. Mudou-se para a capital poucos anos depois de nascido. Apreciador de poetas como Frederico Garcia Lorca, Rainer Maria Rilke, T.S. Eliot, Fernando Pessoa e Ezra Pound, além de escritores como Camus, tem em sua escrita uma densidade bastante filosófica, flertando muito com os ideias existencialistas.  Publicou Os Elementos do Caos, via Plano Cultural, em 1964, ficando esgotado por anos, e sendo reeditado, com muita insistência pelos seus amigos e editores, em 2001. Segundo Nelson Patriota, em um artigo, diz que "Miguel Cirilo, após publicar seu bem-avaliado "Os Elementos do Caos", deixou a literatura e embarcou numa viagem de busca existencial que o levou a recorrer lugares e modelos culturais alternativos, mas o impediu de reencontrar o caminho da escritura poética, embora voltasse a ler poesia nos últimos anos de vida.". Migue faleceu no ano de 2004.


***


2.

o corpo branco no chão
não faz esforço.
a luz circula na intimidade.
a nudez é antiga,
o quarto também.
as palavras estão se arrumando
para um novo poema.
as coisas, postas em sossego
repousam de qualquer modo.
anônima é a presença da noite.
os chinelos esperam.
eles não sabem, mas esperam.
—pode alguém exigir mais para dormir?

***

4.

— não a ambígua face
do deus: já tenho quase
com que moldar o morto
à sua própria imagem.

—não em precário espelho,
o outro: me contento
com apenas o modelo
— o que se tem detento.

(o reino é tão de treva
que — só temor e sono,
não sabe o rei que vela,
talvez, o próprio trono)

***

2.

— talvez um dia, um ano, um pouco mais:
uma vez ainda as cosias te circundam;
vais por caminhos (ou palavras) tais
que em vê-los (só de vê-los) se aprofundam

na tua morte os sulcos viajante
de noites saturnais, vais cavalgando
a luz da grande rosa circundante:
seu perfume te basta (desde quando?)

as lâminas cessaram: nos teus pés,
a certeza de morto, do profundo
fê-las brandas. Por isso, porque és
nu e só, deves tudo. — ser-do-mundo

— foi tarde que escolhi, loucura minha,
o seguir-te diuturno, pois a hora
chegou breve de sono: o cão definha
e Deus (a quem amei?) já foi embora.

***

3.

— faltam dois galos vermelhos
para a morte nos unir:
amor que dorme, desperta,
não é hora de dormir

me dá arsênico e rosa:
quero morrer sem sentir.
amor, já se acende a aurora:
ajuda-me a não fugir.

— abraça-me com o desgosto
da vida que não te dei.
— pelo muito que me deste:
não foi só a ti que amei.

entregaste-me uma sombra,
talvez com medo de mim.
— amor, a morte me assombra...
— só posso te amar assim...

***

4.

apenas o instante vela o rei:
nas vigias do corpo há muito sono.
lá fora são os homens e a lei
que os retém sobre as águas. mas, o dono

das manhãs em corridas e caçadas,
na sala exposto, grave, sob incensos,
já não governa mais suas manadas:
sumiram-se em vazio os sóis imensos.

a fora do seu rosto não mudou:
o indeciso da fronte permanece.
a fonte dos seus olhos já secou,
mas a inquietude é sua, ainda, e cresce.

ali onde se erguem os estandartes,
onde o sangue se agita, o inteiro
lutando subsiste contra as partes.
contudo, é já no morto outro guerreiro:

as muralhas mantêm-no simplesmente,
sem defesa, em sítio não sabido.
o seu nome rendeu-se ante o existente:
está só — como Deus — desconhecido.
***

o mito
                                                                              a Federico Fellini

há no cume da noite, inacabado,
um cão. quem já não o viu, descomunal,
ancorado no tempo? assediado,
desdobrar-se, de pronto em luz e cal?

Ó colosso da noite! em vão, quem sonha,
habitante de coisas negro-mortas,
move-se à luz dessa nudez medonha:
o sono já fechou todas as portas.

madrugada, a cidade se desgarra
e se evade para onde é-quase a fera.
agita-se. debalde há algazarra.
solidão. o-que-morre, em vão espera

a presença do vivo. a besta manda
que se abram porções de abismos breves
aos corpos olvidados. a ciranda
afinal se inicia: passos leves.

o falo se derrama sobre o mundo.
mas se perde na busca. ó frustração
dos deuses acabados! infecundo,
não alcança onde há vida, foge em vão.

***

a contradição

DIFÍCIL
quando não vives.

DIFÍCIL
quando descobres
que no seu nome de morto
não cabe o homem.

DIFÍCIL
quando são muitos os mortos
e seu jôgo se resume
num correr atrás do tempo.

DIFÍCIL
quando sangrando
o mundo se consome:
fera ou monge
— o grito sabe a fome.

***

2.

quando vier o esquecimento
( demolição do momento),
a quem doar a canção?

quando a Imagem
(nuvemsemelhança)
acampar seu rebanho na lhanura da tarde

e o Espaço ágil
sequestrado
for menos que lembrança
(sem mais o engano poderoso da Forma),


quem sustentará
o muro silencioso e frágil da
solidão?

3 comentários:

Unknown disse...

GRANDE POETA. GÊNIO. FOI UMA DAS PESSOAS MAIS IMPORTANTES NA MINHA JUVENTUDE!
QUE DEUS O TENHA.

URBANO MEDEIROS - MAESTRO POTIGUAR NO EXÍLIO

Cgurgel disse...

para mim também Urbano ele foi e continua sendo mestre. humilde, conciso, alumbramentos de infindáveis pensamentos. uma criança dócil, inteligente, arcabouço de tudo que suscita e incita passou por aqui.



Cgurgel

Cgurgel disse...

para mim também Urbano ele foi e continua sendo mestre. humilde, conciso, alumbramentos de infindáveis pensamentos. uma criança dócil, inteligente, arcabouço de tudo que suscita e incita passou por aqui.



Cgurgel